21 dezembro, 2005

economia doméstica

A Preciosa, caracóis fulvos e rosto luminar, borboleteava entre as hortaliças e as caixas de pêros a transpirar um capilé de fada das reentrâncias húmidas. Despia-nos com íris que chispavam lazuli e afrontamentos apaixonados, sordície nos dizeres do rés-do-chão direito, santo ofício do prédio; uma coquete redonda entre as paredes perfumadas do lugar; uma gola em bico numa camisola cor de ginja a desaguar num rego de perdição, a cindir os seios que ora nos designavam num apontar túrgido, inspire, ora nos desdenhavam num recolher ofendido, expire. A Preciosa nunca deixou de ser a ternura inocente de uma quadra de manjerico, mesmo quando das mãos lhe escorria o sangue das lebres esfoladas numa cúspide de ferro, ou quando dos lábios polpudos cuspia as piores contumélias, ou quando vergava os rins para mergulhar uma pá de plástico na saca do feijão. Dizia-nos bom dia e o sorriso era um pomar, um laranjal e uma pouca de terra no descanso da chuva.

20 dezembro, 2005

ginástica

Pelo morrer do sol nas sombras místicas do eucaliptal, onde medravam paredes cruas de tijolo e tábua e telhados de chapa e oleado, esmagava o nariz nas janelas do salão nobre dos bombeiros voluntários, inspirava a cera dos tacos num tédio de sapatilhas e calções brancos e deitava-me a estudar a espuma da rebentação de encontro ao promontório da rua, finisterra ornada de calçada e colunelos de cimento.
- Uma cambalhota. Ao menos uma cambalhota, que não custa nada.
Dali por diante abria-se um oceano de alcatrão e paralelos que os galeões da rodoviária transpunham por certa soma de maravedis. Através do nevoeiro do meu hálito, que pulsava modorrento no vidro, via também o cais e os barris de água doce, o cordame a pender dos mastros e a napa dos bancos no convés de um navio, seis rodas que ferviam e um bafio de gasóleo numa grelha de popa; na confusão de despedidas e benzeduras, os prantos das mães, os carrinhos de compras das avós, as pastas dos escriturários, os sacos de plástico, os gibões, as lancheiras com sinais de trânsito gravados nas tampas, os pacotes de leite escolar, um Gloster, um Messerschmitt e um Heinkel 111 a preto e branco em papelinhos de pastilhas, as lanças, os tambores, a carne salgada, um cortejo de penitentes, o Cristo num madeiro pequenino e miúdos tisnados e ranhosos de semanas a esvoaçarem de mão estendida aos embarcadiços num pão por Deus de quatro estações.
- Assim não vai lá, que disparate. Não tenha medo da cambalhota, que disparate, ter-se assim medo de uma cambalhota.
Acolá, pimenta e canela nas galerias dos prédios e os cartazes do cinema Lido na ilha de Ceilão. O povo das árvores, afeito a encher as cafeteiras e os alguidares na corrente barrenta do Jamor, pouco subia aos portalós; se o fazia, agitavam-se as permanentes e os pós de arroz a bordo, hipérboles de secador e rolos, porfiando o direito à tarifa de uma gente que cheirava a uma tal sujidade de refogado; que antes do vinte e cinco de abril não havia esta pouca-vergonha, que a filantropia tinha os seus limites, que nem três salazares chegavam para pôr ordem nisto, que eu não podia jogar à bola com os miúdos ciganos no ringue do Atlético, que eu não podia acertar com um deles a troca de um carrinho ford amarelo, a pintura a refulgir, por um dodge púrpura de rodas bambas e que a minha mão luziria da palmada, se a tanto chegássemos; onde é que já se viu dar brinquedos aos ciganos...
- O menino não quer fazer a cambalhota? Não faça, que tanto se me dá.
E nos espaldares do salão nobre viviam aranhiços que por vezes pingavam em fios de baba quase imperceptíveis. Media-lhes a aproximação, esquecia-me do rebuliço no cais e do apelo das especiarias e executava-os entre as falangetas, afinal tão éforo como as senhoras de sobrolho enojado nos bancos coçados do autocarro.
- Venha daí, mexa-se, corra, pule, faça a cambalhota, que o menino está que nem um odre.
E eu não tinha como explicar que, a meu ver, a vida era um palmier coberto no balcão da pastelaria Láurea; e dobrar-me assim daquela maneira era pouco menos que um labéu.

15 dezembro, 2005

instante

Tens nas mãos a pequenez de um roedor silvestre. Isso enternece. Olhamos-te as mãos, deitadas sobre bombazina escura, e esbarrondamo-nos. Nas arrelias as mãos desautorizam-te. Na ternura desenham-te. Depois os olhos. Âmbar e bibliotecas. Depois a delicada estreiteza dos lábios, na proporção das mãos, e o que deles sai.
- Cheira a frio – dizes, escrevendo livros inteiros enquanto atravessas a rua.

14 dezembro, 2005

une faiblesse d'esprit

hoje acordei no Cairo. Da janela, um sopro de ar abafadiço, um cheiro de sal e açúcar, de farfalha de tubos de escape e arrumos de curtume no bazar de Kahn-el-Kalili. À porta do prédio, o branco maculado de um polícia a camelo, a AK-47 ao ombro e um par de botas de tamanhos díspares. Às vezes acontece-me acordar no Cairo, e quando espreito o Monte da Lua sobre os telhados da praceta vejo as pirâmides no lugar da Pena, palavra que estão lá, e uma névoa de diesel a adejar à altura dos números das portas.

meia-noite e um quarto

«Estava sozinho num iole em mau estado. Dez léguas a jusante de Chantenay uma bordagem cede. Declara-se uma entrada de água, impossível repará-la! Sinto-me em apuros! O iole afunda-se a pique e mal disponho de tempo para alcançar um grande ilhéu de grandes tufos de canas cujos penachos o vento encurvava. (…) Comecei logo a imaginar-me a construir uma cabana feita de ramos, a fabricar uma linha de pesca com uma cana e anzóis com espinhos, a fazer fogo, como os selvagens, esfregando dois pedaços de madeira seca um contra o outro. (…) A cena durou apenas algumas horas porque, logo que desceu a maré, bastou-me atravessar, com água pelo tornozelo, aquilo a que chamei o continente, ou seja, a margem direita do Loire.»

Júlio Verne – Souvenirs d’enfance et de jeunesse

13 dezembro, 2005

comichão (epílogo)

Quando aporto no cais de desembarque de um parágrafo e dou pela falta das malas, extraio a folha ao caderno com uma lassidão de derrota e projecto os beiços num amuo de neto gordo. Esqueçamos isto de vez.

07 dezembro, 2005

ambivalências


Leio a entrevista de Jung Chang ao Diário de Notícias e rememoro dois textos.

O primeiro é um ensaio de Duo Duo, poeta pequinês que abandonou, em 1989, a China de Deng Xiaoping – uma caliginosa crisálida que caminhava no sentido da apostasia dos preceitos económicos de Mao enquanto massacrava os seus filhos na Praça Tiananmen; o segundo é uma transcrição mais ou menos retocada, mais ou menos fiel aos acontecimentos – entre outras tantas que acenderam o fervor revolucionário de muita da intelectualidade europeia de 60 e 70 -, de uma alocução de Mao Tsé-tung na abertura da Primeira Sessão Plenária da Conferência Política Consultiva do Povo Chinês, datada de 21 de Setembro de 1949.

Um e outro desdizem-se. Como em todos os exercícios de saúde intelectual deste tipo - que todos os comunistas, da ortodoxia à heterodoxia, com uma paragem para meditação na catalepsia, deveriam repetir várias vezes ao ano -, um e outro cindem o autismo nostálgico de uma mentira, talvez a maior da História, e a dor inelutável da inocência perdida. Ainda há quem se esforce por alombar com ambos numa coexistência impossível. Não sei se isso não me comove.

Do primeiro recorto um parágrafo.

«Tudo se passou pouco antes do início da Revolução Cultural. Na parede ao lado da minha cama estava pendurado um cartaz com uma citação de Mao Tsé-tung: "Durante a época de trabalho no campo, devem comer-se alimentos sólidos; nos períodos em que não há muito para fazer, devem comer-se alimentos sólidos e líquidos, em partes iguais, e reforçá-los com batata e batata-doce". Conhecia todas as palavras de cor, embora não conseguisse perceber o seu significado. Todos os dias, antes de adormecer e depois de acordar, observava atentamente o cartaz e voltava a lê-lo. Não conseguia compreender por que motivo o nosso líder nos havia de dizer o que tínhamos de comer. Hoje, acredito que se se transformasse aquela citação num quadro, qualquer um a compreenderia: nos vastos campos não há nada para colher, 20 milhões de pessoas morrem à fome, porque não têm nada para comer. É por isso… É por isso que não se podia exprimir por intermédio da linguagem pictórica, só por palavras.»

Do segundo recorto três linhas.

«Senhores delegados, estamos convictos de que o nosso trabalho ficará na história da humanidade, a demonstrar que o povo chinês, compreendendo um quarto de toda a humanidade, se pôs de pé.»

As nove centenas de páginas de Mao – A História Desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday, situam-se muito para lá da implosão ideológica, a jusante do conflito interior ou da persistência da negação, da capitulação amuada do idealismo de antanho ou do trabalho de mineração, diário e quase obsessivo, em busca do aproveitável. É uma desinfecção da História que coloca num único plano tenebroso o Mao das grutas de Yan’an e o Mao baboso jarreta que enfeitava o leito com jovens amantes. Não sei se isso não me comove.

Créditos: O Figueiredo

06 dezembro, 2005

comichão

Zango-me a escrever. Quero tomar esta vereda, tão azada, tão cheia de sentido, e não me desembaraço desta outra que me atormenta como uma mosca serôdia, uma prosápia que só me alegrará quando enegrecer e encolher no lume do sobro. Tomba-se a esferográfica e não se fala mais nisso.

05 dezembro, 2005

uma nota de vinte escudos numa caixa de sapatos


As noites dos meus domingos são isto - o cheiro de uma colecção de notas esquecida numa esquina da arrecadação. Daí a uma hora, cabeceio de sono com anotações bolorentas, creio que da minha esferográfica, e a fotocópia de uma crónica de Fernando-António Almeida nas mãos, meia dúzia de linhas antigas a sulcar um farrapo de papel quadriculado e mascarras várias em folhas que desenterrei na cova mais funda de uma gaveta; histórias do Santo Ofício e da sua piedosa missão, anoto no esforço da vigília. E então, entre o capitular das pálpebras e um sussurrante adágio de Dvorák, reza a fotocópia - acompanhada dos gatafunhos acenosos no farrapo de papel, creio que da minha esferográfica, não sei se me repito, não sei se sustenho as pálpebras - que, em 1546, Francisco Xavier andava inquietado com a higiene espiritual da Índia. Vai daí escreve a El-Rei D. João III: "A segunda necessidade que a Índia tem para serem bons cristãos os que nela vivem é que mande Vossa Alteza a Santa Inquisição. Porque há muitos que vivem a lei mosaica e seita mourisca sem nenhum temor de Deus e vergonha do mundo". Pelo "temor de Deus" e pela "vergonha do mundo", gloria in excelsis Deo, instalou-se o Santo Ofício em Goa no ano de 1560. E aqui ao lado uma nota de vinte escudos, tão surrada; Garcia de Horta, cristão-novo, um cartapácio na mão esquerda e um olhar pétreo. A irmã de Garcia, Catarina de Horta, espreito-a nas grilhetas da Inquisição em 1568, nesta confusão do sono e de Dvorák, agora allegro molto. Catarina a denunciar o irmão finado; que isto e aquilo, que fez e aconteceu, que Garcia disse - eu seja ceguinha!, imagino-a a gemer - que "Nossa Senhora era uma mulher como ela e que seu filho não era Deus". Depois, as carnes de Catarina a grelharem num Auto da Fé na lareira do sexto andar. E o esqueleto de Garcia de Horta, sábio no "curar de física", exumado à Sé de Goa por instrução do Santo Ofício, tíbias, rádios e cúbitos queimados no fogo do Senhor e soprados ao mar. Até amanhã.

02 dezembro, 2005

desconsolo

Para não perder muito tempo e para poupar a alma ao aperto da desilusão, aponto duas ideias sumárias num quadrado de papel: um tratado de sensaboria literária; um prolongado bocejo de sessenta e seis páginas de texto. Não importa quem, não importa o quê, por pudor e por franco respeito.