28 abril, 2006

no canto da página

Pergunta-me, que começa a tardar: Que farás quando do céu tombar um granizo mais agudo? Fecho os olhos e afundo-me numa madeixa do teu cabelo, pode ser essa que adestras com um gancho meigo ao longo do rosto; escondo-me muito bem escondido numa viela da tua orelha e depois fico por ali a viver do perfume do teu champô, vergel celestial, num êxtase iluminado de brâmane.



Fotografia: Karl Grobl

27 abril, 2006

repartição (dois)

Seis horas e trinta e dois minutos. Olha bem para ti, farrapo de gente. O cabelo a pender, teimoso, para um grisalho temporão, filaças em tom mortiço a ocultar o despontar triunfal das tuas orelhas, que embaraço o teu – rememoras, não sem um fungar de desdouro, a troça desapiedada nos corredores de um liceu cinzento-Cacém que cheirava à confusão húmida de um cais do Delta do Mekong, portanto a espinhas de peixe, mosquedo, trampa e incenso, pelo menos assim o imaginavas no zénite das tuas fantasias púberes a respeito das prostitutas de Saigão, cabelo azeviche e nádegas que eram um encanto, want boum-boum very good, mister?, e o dedo obeso da professora de História a designar-te do extremo da ardósia entre uma poeira de giz acesa de sol suburbano, o motejo e a saliva nos risos, a boca vincada de um desdém majestático enquanto descrevia os elefantes de Aníbal a marcharem para Roma, orelhudos e mastodônticos, orelhudos e mastodônticos, orelhudos, orelhudos, mastodônticos, que orelhudos, raios os partam, os elefantes de Aníbal a desencaixarem, num estampido histérico, os tacos de madeira carunchosa da sala de aula e a professora a sucumbir numa massa ininteligível de carne, pingentes de pechisbeque, écharpe e tailleur, abhorrescere a sanguine daí por diante -, as orlas dos olhos curtidas a talhos de cursor e luz de lâmpada tubular, um branco de autópsia sobre canteiros de cabeças acorrentadas a torreões de papel e furadores numa sala abafadiça, arquivo vivo e arquivo morto, gavetas de expediente, para o conselho e para os serviços, para cima e para baixo, por vezes para os lados, e lá no fundo dessas cavernas de osso que avalias agora, enquanto rapas o queixo, no espelho em círculo da casa de banho, desvendas, naufragadas num negrume de pedinte insone, duas azeitonas em salmoura a espreitar, a espreitar, a espreitar, sempre a espreitar, umas vezes com desconfiança, depois com ciúme e por fim, como muito bem sabes, a encolher-se de um medo que te faz cócegas no esfíncter.

25 abril, 2006

Em cada rosto igualdade


Considerando que, ao fim de treze anos de luta em terras do ultramar, o sistema político vigente não conseguiu definir, concreta e objectivamente, uma política ultramarina que conduza à paz entre os Portugueses de todas as raças e credos;
Considerando que a definição daquela política só é possível com o saneamento da actual política interna e das suas instituições, tornando-as, pela via democrática, indiscutidas representantes do Povo Português;
Considerando ainda que a substituição do sistema político vigente terá de processar-se sem convulsões internas que afectem a paz, o progresso e o bem-estar na Nação:
O movimento das Forças Armadas Portuguesas, na profunda convicção de que interpreta as aspirações e interesses da esmagadora maioria do Povo Português e de que a sua acção de justifica plenamente em nome da salvação da Pátria, fazendo uso da força que lhe é conferida pela Nação através dos seus soldados, proclama e compromete-se a garantir a adopção das seguintes medidas, plataforma que entende necessária para a resolução da grande crise nacional que Portugal atravessa
.

Preâmbulo do Programa do Movimento das Forças Armadas

24 abril, 2006

repartição (um)

Não tenho o coração fechado. Posso dizê-lo - pelo menos assim mo garantiram no genuflexório do confessionário, lá do alto de uma sobrepeliz sem vestígio de nódoa e num hálito morno de aurora a ressumar de entre maçãs do rosto rosicleres - com a firmeza obstinada do caule de mimosa no verde-viço da adolescência, que só um vento molhado de Abril, soprado de viés e à traição, pode desconsiderar. Mas ando arredio desse mistério alquímico de humidades refulgentes e viscos glutinosos a que chamam de amor consumado; é outro o meu fastígio, um orgasmo higiénico e santo de cenobita, a salvo de incómodos transpirados de peles que não a minha, essa sim, benza-a a pastorinha a profetizar aguaceiros de gerbérias numa agonia de úlceras, nacarada como o tegumento dos anjinhos que adejam colunelos acima no altar da igreja; um êxtase de pequeninas caixas de cartão grávidas de agrafos e grampos em tabletes quebradiças, que ternura, e uma luxúria de clipes num pratinho de plástico que só por um terço de pestana, um triz, um filete de falangeta que o selo branco lancetou, metade de um comprimido de aspártamo, meio coto de cigarro sorvido à pressa, não trinco na voragem da gula, a língua e as gengivas escalavradas na volúpia dos tons chocolate e alumínio do conjunto, o pecado num extremo iluminado da minha secretária – um lupanar guloso à esquina de uma calçada de carimbos e papéis timbrados. Palmada.
Discite justitiam moniti.
Abico o astigmatismo da vista, a maior parte das ocasiões, nas ombreiras de números, os débitos, os créditos e ao fenecer dos meses os vencimentos, que um lintel verde e vermelho-eritrócito – horrorizam-me, imagine-se o meu azar, o sangue e os cateteres, abhorrescere a sanguine, o que me leva a fincar as pálpebras se lobrigo uma maca a nascer entre batas brancas e estetoscópios na garganta glauca do corredor - encima numa pompa de livro de acta em papel pardo: Balancete. Nem sempre, porém, sustenho a sanha dos dentes e a saliva que me unta a mandíbula. E dou por mim a capitular, mondando os repolhos de clipes de polegar ataviado com a dedeira, arredondando-os como a uma sebe até sentir as nascentes dos meus lábios a encaminharem-se para os lóbulos das orelhas num contentamento deslumbrado de pobrezinho a quem acendem, pela primeira vez, uma tripa de luzes coloridas numa árvore de Natal.

21 abril, 2006

a pulsar (dois) - quoniam Sancta Synodus sperat hoereticorum conversionem

Vou pela rua
desta lua
que no meu Tejo acende o cio
vou por Lisboa maré nua
que desagua no Rossio
.

J.C. Ary dos Santos - Um Homem na Cidade


*"Porque o Santo Sínodo espera a conversão dos heréticos".

20 abril, 2006

a pulsar

Míope, m. e f. Pessoa que tem a vista muito curta ou que sofre miopia. Fig. Pessoa pouco inteligente ou perspicaz. Adj. Que sofre miopia. (Do gr. muops).



Miopia, f. Imperfeição da vista, que só permite ver os objectos a pequena distância do olho. Vista curta. Fig. Falta de perspicácia. (Do gr. muopia).

in Cândido de Figueiredo – Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa.