27 maio, 2006

do zero em diante

«De qualquer forma, não se vejam obrigados a entender as páginas que vão seguir-se. O que é que podemos dizer uns aos outros? Pouco mais do que nada. Não se iludam, caros senhores. É isso que eu tenho para contar: nada de novo. Talvez vos agrade a forma. Ou talvez a achem tosca. Nil novi sub sole. O novo século está aí e esta história servirá melhor se vestida em boas capas de couro em mobílias de cerejeira.»

Paulo Amaral


Percebo, à primeira pincelada na pauta do bloco - esta Tuesday January 18 podia ser outra data qualquer, e enternece-me, já agora, a fita lilás, que me orienta no mar picado de frases e rasuras, para aqui abandonada a folgar por três minutos numa exuberância de vincos sobre os domínios do fémur -, que o teu contentamento é um bolbo, suponhamos uma cebola, e as minhas ridicularias são como torrões de terra úbere. De modo que me vejo sem o conforto da escolha. Avanço assim mesmo, que se lixe, aos tropeções nesta sintaxe trangalhadanças.
- Não se esqueceu de vir em jejum, pois não? – interroga, enquanto lhe analiso o acima abaixo da plaqueta de latão, Enfermeira!, na preia-mar das mamas – Se não veio em jejum, não veio cá fazer nada.
Lembro-me, pois, de erguer um recipiente de plástico entre dois dedos, numa circunspecção de acólito, e de meditar naquela bacidez asséptica; não gostamos de hospitais, ou de coisas parecidas com hospitais, porque em tudo há um presságio de morte demorada numa asma de pachos e formalina, soluto de aldeído fórmico em álcool metílico, explica a enciclopédia médica para sustento de crises de hipocondria; mas dizia eu, então, que me vem à ideia a madrugada, os meus olhos como os de um arganaz em pedestais de olheiras castanho-carbúnculo, e o recipiente de plástico a deter-se a sul, abaixo da linha do equador, abrandando nos jardins folhudos do umbigo em fugaz contemplação de excursionista, que a buzina do autopullman principia a urrar de impaciência. Lembro-me de concluir, ainda de panamá na cabeça e máquina fotográfica ao pescoço, que o pináculo da minha existência, àquela hora, seria um jorro amarelo de urina aprisionado em plástico com uma tampa de rosca, morno como um abatanado fumegante num balcão de pastelaria.
- O senhor vê bem ao perto e mal ao longe do olho esquerdo – sentencia, enquanto espreito renques de abecedários minúsculos no interior de um binóculo – Que engraçado, já o olho direito vê bem ao longe e mal ao perto. Já se vê, três décadas sempre são três décadas.