30 outubro, 2006

da mensagem de ternura no panfleto de B. Bauer e Marx Die Posaune des jüngsten Gerichts über Hegel

«O passado é o manual dos tiranos; o futuro é a bíblia dos homens livres.»

Herman Melville


Hoje é outra vez dia de te amar em silêncio de mausoléu. Uma quase dor de dentes, Mouraria acima a tropeçar na cárie da calçada. És tão bonita, penso. E eu um gnu atrapalhado na margem de um rio, à procura da gnose dos pastos, demasiado tíbio para ser búfalo e muito feio para alazão. Uma espécie de crina em rarefacção, uma espécie de risco escalavrado pelo suão do metro, ou seja pastéis de bacalhau, mijo e esterco de pombo a acasalar nos túneis do meu nariz, uma espécie de paixão à média luz de uma sala de interrogatório, que romântica a chapada a acender-me as ventas, por fim uma espécie de verbo estropiado.
A minha avó convocava-nos aos domingos para uma espécie de cozido que mais ninguém sabe fazer, soubesse eu explicar-te a falta que me faz a espécie de cozido aos domingos, ou cerzir a preceito estas frases dispersas, sem esta vergonha de noviça. A propósito, olho-te e assobio pacos bandeiras, imagina, para a plateia de Natal dos hospitais que transporto cá dentro, todos os dias e para todo o lado.
- Aonde vamos hoje? – perguntas sem perceber que me basta ver-te despontar do portão para ressuscitar e viver mais uma semana.


Aqui, nesta avenida em desequilíbrio, és parte da luz nas pedras sujas. Então o verde do semáforo acorda e ei-las, três putas a fazerem lembrar um pódio, a abordarem com pressa de andorinha tonta as malhas de uma passadeira enquanto ressumbram odores de refogado das virilhas. Lá ao fundo, como veremos mais tarde, há um treze vermelho sobre a porta da Residencial Pensão de Tomar, há também a Grande Pensão Alcobia e um dizer em papel – pombos em Lisboa, nem oito nem oitenta.
- Aonde vamos a seguir? – perguntas ao cimo de uma escadaria que ameaça esboroar-se – Anda, sobe – decretas.
E há um repolho de gesso no tecto da junta de freguesia, pastas de cartão pardo em estantes de alumínio, um fontanário de aguarela a esconder varizes de verdete na parede. Torno a olhar-te e és uma vertigem de alvenaria, o musgo nas telhas, que romântica a nossa consoada, só os dois, levantamos o Baltazar que o gato derrubou entre um ribeiro de prata e uma ovelha no presépio, a manjedoura a acender e a apagar consoante as luzes pinheiro acima, como nós, agora, aqui, Mouraria acima, e desvendamos as prendas, eu uma carteira para os documentos e uma caixa de lenços, tu uma agenda e uma varinha mágica. Olho-te e penso no que poderia estar a fazer agora, não aqui, não contigo, alhures onde o teu cabelo não possa enredar-me e arrastar-me para o fundo do mar dos teus olhos verde-cré, para ali a morrer ridículo, olha-me bem para aqueles preparos, entre solhas espantadas com a insólita aflição de um gnu encalhado na restinga.


Fotografia: Paulo Lopes