30 novembro, 2007

prolapso

Carolina colheu um pé de urtiga por cuidar que se tratava de hortelã.

António acordou, levantou-se e nunca mais foi visto.

Rute nunca gostou de se chamar Rute por razão alguma, salvo a de Rute ser um nome de que nunca gostou.

Amélia gosta de se chamar Amélia.

Luís faleceu electrocutado ao ataviar a árvore de Natal com luzes de Natal.

Heitor perdeu a fé na medicina oriental quando lhe receitaram acupunctura para a fimose.

Orlando também é conhecido pela alcunha de O Gerúndio.

07 novembro, 2007

altar

Adelino trocou as mãos por garras de jaguar com a mesma prontidão com que retesou as bochechas e os lábios num sorriso de palhaço pobre, um rubor de vinho tinto a imitar pigmentos de camarim e pálpebras a ameaçar uma explosão de lágrimas e sangue – o que o confinaria, é certo, a um canto esquálido da serralharia, altar improvisado. Adelino choraria então milagres de compota, amiúde polpa de tomate, ao que os seus amigos e devotos responderiam com oferendas de maçãs reinetas, uvas e diospiros em travessas de estanho, testos de barro preto e calhas de alumínio. Adelino levantaria uma das patas de felino numa continência de alferes em horto minado, abençoando varicoses, chagas de silvas e adenóides embargados. A serpentina de gente perder-se-ia para lá dos cumes do Açor, estradas e carreiros seriam veios de aflição e os demónios tombariam esconjurados com um sorver de babas celestiais.
Mas Adelino prefere adernar em cais de folha e fórmica, praticar o milagre do fígado e da locomoção bípede, a ansiar o dia em que a desordem cósmica dos alambiques possa devolvê-lo ao abraço complacente da morte, as mãos enfim livres e o rosto carregado de verdade triste.

05 novembro, 2007

lírio (dois)

O pior de tudo isto é a espera. Arrasto-me a adivinhar o teu rosto na saudade dos meus dedos, num vinco da camisa, a desenhá-lo com os extremos dos talheres no azeite do leito de um prato. A tua pele de persa estende-se agora pelo chão, pelas paredes, pelas molduras, pelos puxadores das portas, pelos meus lençóis sozinhos. É só fechar os olhos, vê bem, e sinto-a aqui nesta folha de papel. Levito no allegro de Rodrigo e encontro-te entre águas-furtadas, numa varanda bordada a ferro, o Tejo a passar as mãos pelo teu cabelo com um vento de caramelo, salsugem e gaivotas. Então sonho-te um sorriso debruado a luz. Sonho-te, se o preferires, aninhada no meu peito, agora que o allegro deu lugar ao adagio e a minha senha segue em taquigrafia numa valsa de satélites, à vista de uma lua mais branca que o branco destes prédios, numa rua que tarda em ser minha. Por ora moro em ti, numa assoalhada do teu peito, um catre, uma mesa de cabeceira, uma secretária e sobre esta uma jarra com flores.
- Uma vida inteira à espera.
Ontem, por exemplo, vi-te na lombada de um livro. Daí a nada numa luz oblíqua que esculpiu talhas douradas nas minhas estantes e foi ao ponto de acender Cervantes, en dulcísimos conceptos, la dulcísima Poesía, envergonhado sob as botas cardadas de comunistas chineses. A minha espera é feita disto: de madrigais e de um cinzeiro que não quero limpar. De modo que continuas por aqui, numa leveza de nuvem virgem, talvez de uma cadeira para outra e daí para os meus braços incrédulos.