02 fevereiro, 2007

leannán-sidhe, intermezzo

Salmão baço, as sancas da cozinha são em salmão baço. Das paredes ressumam bolores, veios de humidade negra, úlceras de caliça e perto do fogão as manchas de uma golfada de óleo candente. Pescadinhas de rabo na boca. Sobre um dos bicos do fogão uma cafeteira e nela borras movediças. Pegas de pano e lã, frasquinhos de sais de frutos, um arco-íris de medicamentos dentro de uma caixa de plástico e um transístor de ventre suturado por um elástico baio. As moscas recolhem ao globo de vidro do candeeiro para morrer, uma mosca, duas moscas, três, quatro, cinco, seis, as patas tísicas voltadas para cima. Por fora, numa translação bêbeda, uma borboleta, Smerinthus ocellatus. A lâmpada hesita e com ela uma garrafa de licor de ginja na prateleira mais alta, um pequeno cesto com nêsperas na prateleira mais baixa, quatro ripas de pinho que formam uma casa e na varanda uma vela lilás e uma caixa de fósforos Quinas. Os pratos repousam molhados em três sulcos nas varizes do mármore. E as tuas mãos desaparecem na espuma enquanto uma esfera de sabão levita numa indiferença de planeta estéril. Uma bata e chinelos de pano. Tu. Eu. Isto.

01 fevereiro, 2007

leannán-sidhe (dois)

Belém e o infante a tirar a bissectriz à Cova do Vapor do alto da pedra de lioz, o primeiro domingo de Janeiro é Belém e o infante à proa. E tu és uma gota de Tejo, um limo no cais, uma lapa na quilha de um cacilheiro, enfim, uma mandíbula gretada, vestígios de galão nas esquinas da boca, um pingente de latão, uma lágrima de manteiga na lapela do casaco castanho. E ris. Ris de quê? Desse vazio entre têmporas? De que ris afinal? Da primeira vez que percorremos a Augusto Gil - trepámos as escadas do teu prédio cor-de-rosa e depois um pequeno socalco de tijoleira, que ternura, do corredor para o teu quarto perfumado de lavanda e pinhal -, fui tomado por um pânico frio espinha acima de encontro à nuca, enroscando-se em seguida nas amígdalas, a tal ponto que regredi aos tropeções pelo corredor, escalavrando tapetes de Arraiolos, uma jarra de camélias de plástico e um mosqueteiro de feldspato, e por pouco não profanei os girassóis nos azulejos da casa de banho com os salmonetes em liquefacção que nadavam contra a corrente do meu esófago. E então?
- Hoje estou bonita, não estou? Diz lá, jóia, se não estou bonita? – e atravessas o estrado da esplanada a lancetar pálpebras com a hipérbole da blusa, uma velha equilibrista pequinesa a dominar bica, bule e rissóis de camarão nas pontas das artroses, e esse chapéu de palha, puta que o pariu, a deixar antever um zimbório de cabelo tingido.
- Faço votos de que conte muitos – proclama-se por perto sobre o bocal do telefone, no superlativo babado que a solidão ensaia; no extremo da mesa um pires em flor, as pétalas, suponha-se, uma desordem mundana de guardanapos e restos de pacotinhos de açúcar.
E o infante de bigode ao Sol na ponta exígua de uma caravela ancorada em lodo. Os teus lábios projectando-se uma, duas, três vezes para os miasmas do chá sem consumar o beijo. Então contemplas no rio a passagem de contentores amontoados num convés.
- Não tem importância, jóia. Deixa lá. Acontece – os teus dedos percorriam-me o cabelo num consolo de ama preta; de modo que me senti na obrigação de te explicar que os médicos tiveram de induzir na minha mãe um coma transitório, porque não havia meio de eu nascer, porque não queria sair e isso era tudo.
O primeiro domingo de Janeiro é, agora, o cair das vinte e trinta e dois no relógio de corda sobranceiro ao aparador. Inverno relutante. Uma constipação azul na ponta da esferográfica, que se detém estúpida sobre a folha de jornal. Dez, vertical: Feixe de palha em que se envolvem objectos frágeis para se não quebrarem com o transporte.

leannán-sidhe (um)

«Há sempre, após a morte de alguém, como que uma estupefacção que se liberta, tão difícil é compreender essa invasão do nada, e resignar-se a acreditá-lo.»

Gustave Flaubert - Madame Bovary


Feltro e veludo, as almofadas são feltro e veludo. Excepto aquela ali, um cágado ocre urdido de espessa cordoalha de lã, numa agonia de nódoas de café com leite e migalhas de bolachas. Água e sal. Baunilha. Do tinto da alcatifa surde um caule de pau preto e no lugar da ramagem há, imagine-se, uma pantalha de cartão estampado, note-se, e nela um céu de fim de tarde, suponha-se, mulheres macondes quase sombras, sem olhos e de mamas murchas, uma tabanca difusa engastada em restos de machambas, jacas na mão de um régulo. De modo que a luz nasce dos filamentos incandescentes de Cabo Delgado e vai acender as órbitas vazias de um Guerra Junqueiro em gesso acobreado, um tronco sem braços e até um arremedo de azebre na bainha das barbas. No coto da omoplata o peso de livros e nos antípodas da prateleira um galeão de filigrana a vogar em mares alterosos de croché de encontro a pequenos galgos de loiça.
- O que é que se come nesta casa? – e o canto da folha de jornal faz-se sombra por cima do soba no apocalipse do candeeiro – Açorda – ouve-se da marquise, e nisto a consulta do obituário revela dois cocuanas acocorados entre a vegetação.
Ocorre-me agora que esta cidade é um murmúrio seco, um lamento de criança para lá das persianas de um primeiro andar, uma montra sórdida, um casal de manequins, íris e retinas de vidro que nos seguem o caminhar penoso à procura de um porto de abrigo. Esta cidade que desaparece na noite é, dizia, um murmúrio, tão triste, tão sozinho, tão bordado de penumbras, feito de folhas mortas nos passeios, de um número de porta a fazer lembrar Paris, trinta e sete, primeiro andar, de vento frio na Avenida de Roma.