23 abril, 2008

receita de rissóis de camarão

Percorro um resto de rua em passo preguiçoso, numa cidade que adormece com o dia a meio. Uma cidade quieta. Luz, rio, eu, um degrau. A cidade quieta. De súbito uma ponte e telhados na ponta da esferográfica – Bic Cristal, a cidade aquieta-se na curva grávida de um b sulcado a Bic Cristal, consoante os pombos escorregam das estátuas morrediços de calor na ponta de uma Bic Cristal. Da cidade ao subúrbio são duas horas, quatro pombos sobre a calçada, três dedos de lágrimas, um homem de gabardina e calças de pijama a colher cotos de cigarros. Por vezes o percurso faz-se em escassos quatro autocarros amarelos, dois passeios rasgados, um farrapo de jornal de encontro a um poste de iluminação e duas putas avenida abaixo a pigarrear pintelhos. De maneira que às dezoito horas, vinte e oito minutos e cinco segundos começo a espreitar os nomes das ruas na azulejaria. Beatriz Costa!, anunciam nove azulejos. Deixo o carro. O vento despenteia-me. Foda-se. Só a base de um bolo de arroz é pior do que um risco em desalinho, a melena a ondular nos reflexos das montras. Descubro o número Seis A numa praceta entre prédios quadrados. Entro. Saio. Antes de regressar ao carro encosto o abdómen a um balcão de café, há pipis, há moelas, há um eu soturno num espelho a vomitar dedadas entre uma águia de loiça, uma garrafa de São Domingos e um frade de barro com um galhardete sobre os tomates. Do subúrbio à cidade são duas horas, oito pombos sobre a calçada, dedo e meio de lágrimas, um homem de calças de pijama e torso nu a fumar cotos de cigarros. Por vezes o percurso faz-se em escassos dois autocarros amarelos, um eléctrico, três passeios rasgados, dois missionários de Salt Lake City a passearem o chulé de meses por ruas estreitas e cais ferroviários e duas putas avenida acima, a primeira a coçar uma axila de sobrancelha franzida, a segunda a adivinhar vasos de manjericos no branco das nuvens. Acompanhar com arroz branco e uma salada de tomate.

21 abril, 2008

nós

Vejo-te debruçada num varandim de ferro verde. O Alva corre em tumulto aos teus pés e há um fragor de água e rochas. Não me vês. Olho-te daqui, na amurada sobranceira de um galeão de saibro, choupos e alcatrão, os pavilhões das serranias hasteados em mastros de xisto, entre silvados e giesta. Os teus olhos estendem-se a montante em melancolia-mel. Há cornucópias no teu cabelo à medida que a tua mão de leite se ergue mansa até aos lábios finos. Uma carícia pensativa. Vejo-te na moldura do ar húmido, o recorte do teu rosto macio na direcção dos seixos. Abraço-te à distância. Sentes-me? Adivinhas-me no teu encalço? Lanço a âncora aqui mesmo, neste recanto de afluente submisso. Entrego-me aos caprichos das tuas madeixas de anjo, adernando aos poucos num abandono doce.
- Gosto tanto de ti – dizes-me. – Quero ficar contigo.
Uma prece íntima, um tremor do peito, uma sede de nós, eu, tu, nós, um sussuro morno numa viela da orelha, o teu olhar a envolver-me em ternura. Encontrei-te. Cheguei.