28 agosto, 2008

subúrbio

Lurdes retirou uma escumadeira da gaveta e deteve-se por alguns minutos no reflexo do galo de Barcelos no cabo de aço inoxidável.

Jorge comprou o jornal e leu-o demoradamente na estação de comboios do Cacém até encontrar o nome de um primo emigrado nas páginas do obituário.

Rodrigo barbeou as costas das mãos e os dedos antes de aplicar verniz vermelho nas unhas.

Anabela varreu os últimos metros do passeio, acendeu um cigarro e foi atropelada por um camião de congelados.

Manuel recolheu à cama pelas vinte e três e trinta e cinco.

Rosa recolheu à cama pelas quatro e vinte.

Francisco aprecia lingueirão, melancia e o odor do quintal depois da chuva.

Miguel deu entrada no serviço de urgências do hospital de Amadora e Sintra com uma chave de parafusos no canal auditivo.

As fotografias de Miguel e de Anabela estão nas páginas do obituário do jornal comprado por Jorge.

Rosa simulou uma gravidez de forma a conseguir um assento no comboio.

Jorge levantou-se e cedeu o lugar a Rosa. Ambos sorriram.

Rodrigo comunicou a Lurdes que tenciona ir viver com Francisco.

27 agosto, 2008

défice de atenção (três)

Ora uma moeda de dois cêntimos somada, suponhamos, a uma moeda de cinco cêntimos perfaz, vejamos, sete cêntimos, que por sua vez somados a uma moeda de dois euros, foda-se, perfazem dois euros e sete cêntimos, isto se na carteira não jazerem moedas de um cêntimo num abandono de verdete, puta que as pariu, o que tornará substancialmente mais complexa a aquisição de um iogurte e de uma sandes mista em pão de sementes. Moedas de um cêntimo, moedas de dois cêntimos, moedas de cinco cêntimos, moedas de dez cêntimos, moedas de vinte cêntimos, moedas de cinquenta cêntimos, moedas de um euro, moedas de dois euros.

26 agosto, 2008

detergente

A morte consiste em deixar de ir comprar pão ao extremo da rua pelas oito horas. Acordar é negligenciável, uma vez que dormir também o é. Desaparece a necessidade de cuidar da higiene. Madeira, cadáver, cetim e sobre o conjunto uma manta de veludo púrpura debruada a ouro. Pela manhã, persiste o aroma das azáleas depositadas de véspera numa jarra de mármore a um canto da campa. Morrer pode ser bom na medida em que a transpiração cessa. Por outro lado, sabe-se que unhas e cabelos podem continuar a crescer por tempo indeterminado, por vezes até à transferência de tíbias, rádios, cúbitos, vértebras, maxilares e falanges da terra para uma gaveta a que se justapõe uma fotografia a sépia e ovalada. Acaba-se a saliva, o cerúmen, o muco e o esperma. De um só golpe, finda-se o cuspo, o prurido no conduto auditivo externo, a irritação das mucosas, a masturbação, o coito e as nódoas desmaiadas a meio do lençol. De Inverno não se experimenta o frio. De Verão o calor não incomoda. É certo que não mais se pode comer mil-folhas na pastelaria Estrela entre menopausas, laca e lavanda. No entanto, termina o fenómeno da fome, pelo que termina a gula e, a jusante, a dificuldade em arquear o tórax para unir os atacadores. Acaba o cansaço. Descanso eterno. Ao principiar a noite, o sol oblíquo acende uma cruz de latão na lápide. Por perto um torrão húmido e gerânios de plástico. Uma coluna de formigas desce um outeiro de terra e naufraga em gravilha. Mas tudo isto importa pouco, pois tem lugar à superfície. À noite o vento assobia entre jazigos. Sem contudo incomodar.

19 agosto, 2008

défice de atenção (dois)

Acontece-me vogar para mares alterosos sem perceber por que razão mudei de rota. Por conseguinte, que se foda.

16 agosto, 2008

compulsão

Um pequeno charco de água suja em Peniche. Não o salitre nas paredes do forte, não uma gaivota sobre um pináculo esférico na Avenida do Mar, não a quadrícula na calçada, não uma muralha escalavrada, o viço de ervas daninhas nos interstícios das pedras, não estes três velhos a darem à costa num vagar de algas na maré baixa, atracados a uma mesa de esplanada, o primeiro uma camisola castanha, dois anéis e um chapéu de chuva azul de uma para outra artrose, os demais dois ganchos a governar fios grisalhos de cabelo em ruína e uma bóina cinzenta, casados, creio que casados, de certeza que casados há pelo menos tantos anos como as pregas no reboco do forte, não o caminhar tonto de um solitário do lancil para o alcatrão, não o ouro de brincos a pender em lágrimas nos flancos de um promontório no lugar de um queixo, um Cabo Carvoeiro de tegumento e penugem esquecida, não um casal de suecos, nos ombros chagas de sol, nos sovacos o odor de pombais abandonados, não um brinquedo de plástico nos dedos minúsculos de uma criança que se baba e ri, não um pregão de peixeira, escamas no sabugo de uma unha, não um par de óculos escuros a medir nádegas e peitos numa esquina da praça, não um pescador de ferro forjado de costas para o mar, de remo ao alto diante de caldeiradas e santolas, não o ordinário estalido de chinelos de encontro ao cais de embarque para a Berlenga, não eu. Um pequeno charco de água suja em Peniche. Penso no pequeno charco de água suja em Peniche e em tudo o que um pequeno charco de água suja em Peniche encerra e comanda.
- Veste uma camisa, Vítor, ceifa a barba que desponta das tuas mandíbulas, Vítor, que eu atavio-me de brocados e pérolas, Vítor, visto uma blusa vermelha sangue de boi e ponho a cara caiada numa alvura de gueixa, Vítor, tu um samurai de Peniche, Vítor, afianço-te que a Avenida do Mar será nossa, Vítor, que as lagostas farão vénias respeitosas no fundo do aquário da cervejaria, que os restos de chuva na calçada secarão à nossa passagem, Vítor, monarcas dos faróis e dos molhes. Que bem que dançaremos os dois, Vítor, rutilando no terreiro como um par do cinema. Amas-me, Vítor? Diz-me. Conversa comigo, Vítor. Diz-me que estou bonita. Elogia-me o verniz das unhas, Vítor. Mostra-me que ainda és homem, Vítor.
O forte, a gaivota, a calçada, a muralha, as pedras, os três velhos, o solitário, os brincos, um casal de suecos, a criança, a peixeira, os óculos escuros, a estátua, os calcanhares, eu e o olhar triste de Vítor. Não. Um pequeno charco de água suja em Peniche.

15 agosto, 2008

auto da fé

Juro-te, crítico relapso, que ao abrir as pernas, convidando-me solícita a afundar-me entre os filetes húmidos do amor lúbrico, libertou bafios de cave antiga e que no jarro sobre um naperon a um canto da mesa de cabeceira lacada pereceram desde logo dois cravos e uma túlipa. Quanto a mim, limitei-me a perder os sentidos, para de imediato ser devolvido à miséria da consciência por um par de incisivos em matizes de manteiga que me maceravam lenta e languidamente as cartilagens da orelha.
- Gostas assim, riqueza? – perguntava-me de lábios acoplados à curva do meu queixo.
Depois principiei a experimentar-lhe nas palmas das minhas mãos retesadas as cerdas das coxas e demais imprecisões da carne, de modo a tomar o peso e a forma a uma fealdade de bairro social, de alfaces, tomates e anéis desmaiados de cebola abandonados em alguidares azuis, de pequenas concreções de merda em gaiolas de periquitos, bicos de lacre e canários.
- Isso. Anda. Arremete como os elefantes de Aníbal.
Napoleão, contaram-me certo dia a partir de Umberto Eco numa mesa de café, mandava instruções do jaez higiénico a Josephine, quando em campanha. Pedia-lhe que resguardasse aromas, que se abstivesse de se lavar entre as virilhas nos derradeiros dias antes do retorno do soldado. Como o percebo, crítico impenitente, agora que me ocorre uma unha estaladiça de indicador a sulcar-me lenhos de sangue no lombo.
- Agora por detrás.
E as nádegas esbarrondam-se de encontro à minha pélvis num ir e regressar de báscula, um enormíssimo bacinete de sul a norte e de norte a sul à cadência de um malho de partir calçadas entre os calos e os cravos nas mãos de um romeno. Eis-nos, estimado crítico atreito à fatal deliquescência dos biltres, eu e uma puta furtada a um vão de escada na Praça da Figueira, os dois, amando-nos num quarto de pensão, uma cama de ferro, um mosaico canceroso, uma cómoda, um casaco de malha a morrer sobre uma camilha de tule e Jesus de dedo espetado e olhos suplicantes a perguntar pelo Pai numa imortalidade de papel lustroso.

14 agosto, 2008

défice de atenção

Custa-me admitir que sou impaciente, inconstante, insatisfeito, inábil, incapaz, inadequado, inadaptado, intransigente, intranquilo, intratável, irascível, insociável, imperfeito e incompleto. Por conseguinte, que se foda.