07 janeiro, 2009

m de minimalismo

Isaac detectou pela manhã uma borbulha no extremo do queixo, que depressa principiou a espremer entre os indicadores.

Cerca das nove horas os Bombeiros Voluntários de Queluz foram chamados a remover os restos de Isaac que uma sonora detonação aspergiu pela cerâmica do bidé, do lavatório e dos ladrilhos. Na saboneteira repousava intacto e trocista um pequeno bolbo de pus.

04 janeiro, 2009

seis, sete e oito (três)

Degrau. Um manto de lágrimas de pinheiro sobre laje e gravilha, choupos e ciprestes nas margens do caminho. Degrau. Um penedo a transpirar musgo, a laje despede-se das lágrimas dos pinheiros e as colinas estendem-se em vagas de frio na direcção da fronteira, na tela áurea do Sol. Degrau. Cadeirinha de Nossa Senhora, cadeirinha do meu bem; onde se sentou Nossa Senhora sento-me eu também.
- A tua pele de leite confunde-se com as paredes caiadas da capela e torrões de quartzo entre os veios de um trono de rocha – proclamo de lábios cerrados à guarda de um crucifixo sujo talhado em pedra de lioz. Imagino um messias de boina de fazenda, camisola de lã e botas com solas de pneu a suster o madeiro no ombro rangente, rios de peregrinos serra abaixo, enfermos de chagas purulentas e possessões de demónios ibéricos, as nascentes distantes, um fiapo de água cristalina a brotar de uma caleira na Travessa do Forno, outro de uma pálpebra num rosto de ferro indizível a encimar as tachas e as dobradiças de uma porta no cais da Rua do Passo Quedo, a esquadria imperfeita da muralha e um gato estrábico e dócil por companhia.


Degrau. Quase no cume. Erguemos as mãos e tocamos o céu gelado num êxtase de ascetas. Beijamo-nos. Os teus lábios sabem-me a calda de ameixa, o recorte do teu rosto confunde-se com os cumes enquanto levito a emanar halos de beato dos poros da nuca. Degrau. Eis-nos. Três velas sobre um prato de barro a iluminar o altar da nossa comunhão, no topo do conjunto uma escotilha oval e a ermida reproduzida em golpes toscos de espátula, um monte, uma igrejinha de cerâmica, um céu franqueado e Cristo a tombar morto no colo da mãe, ambos ingénuos e desiguais. Feridas abertas no peito, numa curva da anca magra, os joelhos esfolados, os pés sangrentos. E a Senhora da Penha contempla-nos numa placidez de bordadeira, lágrimas de verniz que escorregam pelas bochechas frígidas, pelas vestes negras, pelo pano de linho sobre a pélvis do mártir, por flores de bronze estampadas sobre o relevo das pernas, pela tinta de água do altar, pela tijoleira, pelas grades, pela sombra trémula de um enlace de amantes à luz de velas proibidas.

01 janeiro, 2009

sinfonia de gelatina com pêssegos

Os olhos viajam do azul para o cinzento com uma doçura de nuvem a insinuar-se num céu de subúrbio, a sobrepujar um vulcão de ladrilhos num carrocel de automóveis, da cor para a textura com a precisão das obras de arte, de um êxtase de menina diante de uma caixa de chocolates para a melancolia de um vazio que não se pode preencher, de um halo de bondade sobrenatural para uma chamazinha de vela a acender tornozelos, sandálias e bordões de santinhos em pagelas, de uma altivez de sala hipostila para uma singeleza de retratos, bordados e caixas de plástico com carne assada e fatias de bolo de ananás, de um sorriso que nos lava a tibieza e as ausências para um esgar de justiça que perdoa sem absolver, de um abraço que cheira a amor para uma chama de saudade que arde numa mão inquieta sobre a mesa.
- Tenho tantas saudades de Angola – repete. E os olhos perdem-se em distâncias impossíveis, embondeiros e manadas de elefantes, o corpo franzino maior do que a vida a crescer em frescura e juventude, em paixão e calor, a regressar no dorso de um jipe a um rés-do-chão na Amadora que o amor transforma em palácio de cristal, para retomar a coreografia do punho e dos nós dos dedos na cadência dos sábios, três vezes para diante, três vezes a recuar, três vezes para diante, três vezes a recuar. – Deita aqui a cabeça, prometo que não te despenteio – e eu a pedir-lhe em silêncio que me despenteie, que me salve de abismos e da maldade dos outros com um carinho de avó, as pernas um leito de claras em castelo e o cabelo branco um baldaquino de seda do Oriente.