27 fevereiro, 2009

boletim tauromáquico

O diligente funcionário do aparelho sentou-se à secretária e tamborilou sobre o tampo com três falangetas e um punho vincado. Diligente, o camarada escoicinhou uma e duas vezes no linóleo. Encontrou tempo para cuspir, diligente, perdigotos de inanidade no sentido dos cristais líquidos. Para depois percorrer a diligente Acção Socialista. Para depois vomitar judiciosas perorações sobre confissões e escolhas. Diligente.

O funcionário é causídico. E diligente. Escriba. Da sintaxe furiosa aos lábios frementes de ódio perante as maledicências. Quem ousa motejar, esclarecer ou questionar, alvitra diligente o funcionário, devia acabar de escroto pregado a uma tábua de pinho nas caves do partido.

O camarada escreveu e reproduziu os diligentes comunicados. No recato de uma casa de banho, bifou a carteira profissional ao bolso da camisa e com os cantos do documento limpou as nádegas de toda a merda. Havemos de fodê-los a todos bem fodidos, rugiu diligente.


03 fevereiro, 2009

medo (prólogo)

A grelha do carro é o bordão de Moisés a rasgar um mar de subúrbio. Num promontório do Cacém, à direita, agoniza um farol de luz fátua entre uma marquise e um postigo de casa de banho. Navios mercantes, arrastões, bacalhoeiros, batéis de barqueiros tristes e couraçados com gasóleo ou grandes tambores de betão no lugar de tombadilhos. Sobre a foz de uma avenida a ranger de cárie, um murmúrio de morte demorada, um manto mais negro do que a noite.