18 agosto, 2009

rés-do-chão

Acordei espesso como o manto de cristais de gelo sobre o torreão do Palácio da Pena. A colcha de lavores celestes que está sempre lá mesmo quando não está. Há um velho que me fita do espelho, uma ironia de desembargador jubilado nas sobrancelhas, um pequeníssimo conclave de baba nocturna a um canto da boca, que liberta miasmas de alho e queijo, de inércia e morte difusa, de abandono e capitulação, não dispare, rogo-lhe que não dispare, não me enforque, isso é que não pode ser porque vesti estas calças lavadas, telefone à minha mãe e diga-lhe que me faça um prato de arroz doce. Ei-lo. O homem prenhe de princípios que caminha com olhos meridionais, uma teimosia de pombo urbano a extorquir restos de papo-seco aos interstícios dos paralelos, a espinha vergada ao descalabro do ventre, o couro a escalavrar-se de ano para ano, parabéns a você nesta data querida muitas felicidades muitos anos de vida, ide todos para os tomates mais essa lírica de contentamento colhido em vasos de marquise, amassado em alguidares de plástico e servido aos domingos em travessas de borossilicato. Um bilhete para a primeira fila do supremo enfarte no tlim do microondas. Tlim. Sim? É o colesterol. Bom dia.


16 agosto, 2009

parce que c'est tellement beau tout cela

Gosto da forma como a curva da tua anca se insinua quando acordas, a prometer volúpia. Gosto de sentir o teu cabelo entre os dedos, a metade do teu rosto a procurar refúgio na minha mão. Gosto de tomar o teu ombro a meio de uma álea de plátanos em São Pedro de Sintra, a luz a chegar até nós da desordem das folhas, oblíqua e hesitante. Gosto de te sobressaltar a nuca com um beijo, a alvura da tua pele de gueixa a eriçar-se de ternura. De amor. Gosto de ouvir o meu nome na tua voz.


lípido

O insofismável aborrecimento de uma gota de suor a escorregar pela curva da carótida com uma languidez de azeite, enquanto a prodigiosa dorna e a respectiva cicatriz de um cordão umbilical tombam para o suão de Marrocos, sobre o cós das calças. Pêlos muito pretos num desalinho que o banho adestra e a aspereza da toalha desarruma, a toalha esquecida sobre a colcha. Como a papada de uma ave palmípede, isso, suponha-se uma ave a debater-se com a agonia de um peixe entre as tenazes do bico, no rabo um estertor de enforcado e o fulgor do Sol de Lisboa, tão perto e tão distante, substitua-se o peixe por uma fatia de bolo de chocolate a esbarrondar-se de encontro à mandíbula e aí o temos, um perfeito paquiderme de Aníbal, que ternura de refegos, a trepar os Alpes, ou a travar à chegada a Alfragide, o Estádio da Luz a crescer como um cesto de vime pintado de vermelho e um quadrado que se acende, oitenta!, ou a resfolegar na derradeira volta do laço no sapato, ou a suster no leito o ímpeto do quadril porque a aorta ameaça descoser-se e o miocárdio esgarçar-se. A geometria imperfeita de uma maçã reineta, ainda que dos canteiros das orelhas, que engraçado, desponte uma lanugem de pêssego. No prato. No espelho. De pé. Deitado como uma bacante a multiplicar canais de televisão, restos de bolo em redor dos mamilos, a sordície em que me acho a fazer lembrar uma viela na Brandoa, a fazer lembrar um saco de plástico que pende de um pinheiro à beira do IC2, se imaginar com muita força consigo ver um camionista de Frielas, uma chapa de matrícula a proclamar TOZÉ num extremo da carlinga, na escotilha lateral uma mamalhuda de indicador entre os lábios. Debruçada sobre o banco corrido, uma prostituta tisnada a ranger de piorreia principia a ordenha dos testículos. Uma segunda gota escorrega agora pelos nódulos da espinha. Aloja-se quente entre as nádegas. Um peido indolente. É o resplendor do Verão que se anuncia.