25 março, 2009

turno da manhã


Amanheço a gotejar solidão. Sai-me pelos cantos dos olhos como sardaniscas a despontarem de fendas num muro de quintal. Em seguida ergo-me com um peso de botija, lânguido, rastejante, os calcanhares a sulcarem ninhos de pêlos púbicos e filamentos de cabelo pardo dispersos pelo mosaico. Do espelho para cá espreita-me um rosto anémico que aparenta ser um funcionário do Ministerium für Staatssicherheit, adivinho comentários em surdina sobre a heresia de escorar Solzhenitsyn nas espaldas de Lénine com Mao de atalaia. Sou eu, porém. Acorda, cabrão.

23 março, 2009

gourmet

Mark Knopfler. Telegraph Road. Ainda acredito na mestria sem a lixívia das mesas de mistura. Quando tudo o mais ruir pela base, haverá Knopfler.


19 março, 2009

konnichiwa

Uma lente oblíqua, no extremo de uma haste em filigrana, desliza gloriosa pelo algeroz do nariz. Retalhos de polegares no vidro da lente, a sobrepujar a íris verde de um olho de roedor. Um indicador compõe uma e outra vez, talvez fosse melhor escrever sempre, talvez fosse melhor apontar ao balcão da pastelaria Estrela e mastigar o chocolate herege na cobertura de um mil-folhas, mas escrevia há instantes que um indicador compõe uma e outra vez a lente e com ela a haste como lava incandescente septo nasal abaixo, de encontro à falda de uma narina húmida e carmesim, ao que consta por causa de um suão marroquino que sai em gorgolejo de uma grelha de ar condicionado.


- É do ar condicionado, sabem? – e ambas as narinas transpiram seiva translúcida, ambas as narinas se dilatam rubras como cachos de cerejas japonesas, não se dá o caso de as cerejas japonesas serem mais carnudas do que, por exemplo, as cerejas de Trás-os-Montes, todavia sucede que as cerejas que agora me ocorrem ressumam de árvores que choram delicadas no templo de Tenryu-ji, cerejeiras que a gueixa que tenho o hábito de trazer aninhada na hipófise me diz chamarem-se shidare-zakura. Não aqui, não este gabinete com esta balança. Uma pensão em Osaka. Uma pensão com águas quentes e frias em Osaka. Uma pensão com águas quentes e frias e um quimono de seda num cabide em Osaka. Uma pensão com águas quentes e frias, um quimono de seda num cabide e um mil-folhas sobre a mesa de cabeceira em Osaka.