22 setembro, 2009

farol

O caminho para o promontório de São Vicente faz-se entre bermas de terracota e tufos de mato estreito, rubores de sol marroquino em peles de albino e línguas ásperas como pigarros de dispensário, aqui três alemães a mastigar pães e salsichas, as bocas escancaradas numa alegria de colesterol à sombra irregular de uma caravana de farturas, acolá a cintura de pipa de uma ave pernalta que regressará a Manchester ao quarto dia do Outono, na mala um sabonete de hotel, uma pequena chaminé que proclamará o Algarve a partir do frigorífico, FRIDGE MAGNETS TWO EUROS!, e um frasco de sais de fruto com areia do Carvoeiro, à esquerda três espanhóis a grasnar, à direita bancadas de camisolas de lã, pequenas rosas do deserto, chapéus de couro e galos de Barcelos manchados de sal.


18 setembro, 2009

whitman

Entardecer. Aleixo habita o selim de uma bicicleta-tangerina a inclinar-se de velhice sobre as pedras iguais do Largo Marquês de Pombal, despercebido entre estalidos de chinelos e conversas sem chama de banhistas tardios. O Poeta Destemido, proclamam sem quebranto as costas de Aleixo, uma secura de cortiça nos antebraços e o pequeníssimo zimbório negro da bóina a apontar o Norte. Um aceno curto. Num sopro, larga a pedalar epopeias que se perdem na brisa de Setembro como perfeitas bolas de sabão.


17 setembro, 2009

vasco da gama

Este Setembro é uma gaivota longínqua a franquear as chaminés de Sines. Anuncia-se tímido por entre o cordame de um veleiro esquecido no torpor dos molhes. Ainda tenta mostrar-se rijo, a imitar queixos de pescadores no cais de uma taberna. Mas desfaz-se daí a nada. Tomba à sombra das muralhas. Quando torna a erguer a cabeça é já um doente renal em doce declínio num catre de alcatrão e lagoas desordenadas de empedrado e areia suja. Rua João de Deus. Largo do Castelo. Um homem de olhos transparentes e camisa puída, o mesmo que dispôs automóveis como uma estrela exânime na sua jornada sideral, uma gratidão resignada na mão estendida, sonoros borborigmos de desespero ao contemplar o latão de uma moeda de vinte cêntimos a fulgir como o bricabraque de plástico numa loja de chineses. Agora despede-se do terreiro. Sozinho, leva nas retinas um lume de heroína, uma vaga memória de pés descalços na areia molhada, do terno hálito da mãe após um beijo na testa e do cheiro a mar no pescoço do pai, a cabecear de sono puro no colo quente. Isso e o prenúncio do Outono.
- Só temos isto para lhe dar - e a moeda pinga para a palma escalavrada como uma gota translúcida de placebo.
- Muito Obrigado. Não faz mal. Muito obrigado. Muito obrigado.

16 setembro, 2009

paz

Porto Covo escreve-se a branco e a azul na linha contígua a praias e pequenas enseadas de calmaria a que alguém chamou Rua do Mar. Há azul nas molduras do casario chão. O mesmo azul do Atlântico que se faz glauco antes de estender toalhas de espuma pelos areais. Há azul no céu. Um azul de ozono sobre uma baía onde não se adivinha a escuna de pavilhão negro. Barcos de pescadores como bagos de arroz numa indolência de porto seguro. Do glauco ao azul.

11 setembro, 2009

caleidoscópio

Godofredo preencheu o peito de ar, recitou o acto de contrição, persignou-se em piedosa genuflexão e agitou furiosamente o estilete, esventrando ali mesmo o pequeno bico de lacre de sua avó paterna num alvoroço de penas, alpista e moela.

Arsénio teria dado um bom limpa-chaminés, mas foi Augusto quem sobreviveu à explosão da bilha de gás.

Bacelar é um indivíduo.

Augusto desposou a filha do vizinho do terceiro direito, com quem concebeu dois faunos e um minotauro.

Antonino é o proprietário da confeitaria A Salmonela.

De maneira que quando chegou à idade adulta principiou a urinar em alguidares e a vociferar para as fotografias das tias-avós sobre a cómoda. Até ao dia em que conheceu Penélope, um travesti de Alfragide. Agora chama-se Soraia.