30 junho, 2010

dioptria

Uma boleia para o Vimeiro. Rogo-vos que me concedam uma boleia para o Vimeiro. Habito um retalho de oleado e dois caixotes de cartão canelado entre muralhas de canas. Larguei a caminhar há dois sóis no sentido deste promontório da Ericeira. Confiei os meus pertences a um par de ratazanas e à gaivota que desposei e agora acho-me aqui, perdido, sem ter logrado, como planeara, roçagar a braguilha nos torneados das moças do parque de campismo, migalhinhas de salmoura nas esquinas das orelhas, um vago odor a mar e a sovaco a desprender-se-lhes a cada piparote, que delícia, os olhares vidrados de cerveja e mortalhas candentes que me lembram o azinho na cozinha de minha mãe, que doçura de senhora era minha mãe. Meu pai era bruto como as penedias. Foi ele quem me desencaixou o maxilar, condenando-me a sorver fiapos de saliva até à última golfada de ar. Uma boleia. Para o Vimeiro. Moro na aproximação ao Vimeiro, juro-vos, sobre um retalho de oleado, abrigado do vento por dois caixotes de cartão canelado, entre canaviais, a ouvir o oceano a espumar toda a noite, num vaivém de sal e algas, como os rabos das moças, que delícia. Ignorem-me no banco de trás, os meus olhos sumidos nas lentes a procurarem um Vimeiro pardo que se desenha na proa do carro. Prometo manter as mãos à vista de todos, quietas sobre as calças de fazenda estiolada. Prometo pensar baixinho, para que não me adivinhem esta tristeza de pobre. Só quero uma boleia para o Vimeiro. Podem fazer troça do meu cabelo, da minha camisola de malha, do meu queixo enviesado. Mas levem-me para o Vimeiro.

29 junho, 2010

caderno pautado

Dizem-me: escreve.

Como explicar-lhes que não me recordo de nada? Que escrever é, outrossim, o equivalente a aparar as unhas dos pés com uma turquês? E que, se o fazemos a contragosto, de pouco vale?