19 agosto, 2010

Ana

Isso. Um passo. Devagar. Olha a minha mão estendida. Toma-a na tua. Sente-lhe o calor. É teu. É para ti. Para sempre. Agora. Outro passo. Vá. Sei que o darás, a perna pequeníssima a hesitar no vértice do tapete de lã, os teus olhos glaucos a sorrirem-me numa luz de gota ao Sol, algures entre a vontade, o medo e a alegria irrepetível da descoberta. Repete o gesto. Estás a caminhar. Vês? Conseguiste. Hás-de caminhar mais, adiante, apontar a cumes de montanhas, atravessar torrentes. Se um dia quiseres voltar, terás a minha mão. Morna de amor fraterno.

15 agosto, 2010

condomínio (dois)

Com um desvelo de artífice, desdobrou o papelinho enrugado que encontrara caído entre duas pedras da calçada num passeio da Rua da Madalena e trouxera junto ao peito, no bolso da camisa, enquanto oscilava para trás e para diante, para um lado e para o outro, sobre o silvo dos carris. “Adeus”, lia-se no centro geométrico do pequeno farrapo.

13 agosto, 2010

俳句

Houve em tempos um homenzinho, pequena luminária da gleba, que era tão vaidoso das suas bibliotecas e tão ou mais cioso do perpétuo desalinho filosófico das suas barbas pardas que nem a comovente doçura de um deslize na boca de uma bela mulher seria capaz de perdoar.

10 agosto, 2010

condomínio (um)

Fósforo sobre fósforo, munido da paciência do monge copista, Adalberto reproduziu à escala um perfeito galeão espanhol que teria ofertado ao afilhado pelo Natal, caso Oseias, o gato, não tivesse errado por três centímetros o cálculo de um salto entre um e o outro extremo do aparador.

03 agosto, 2010

ponto final parágrafo

A meio das suas exéquias, ergueu-se a custo perante os esgares de espanto, terror e transe e largou a correr no sentido da rua, sem se despedir do cetim. Passou pelo cruzeiro de betão e ferro, onde um cão sem nome dormia ao calor de Agosto, o largo da Igreja de Queluz a dividir-se entre as sombras das salas de catequese e o queimor da escadaria no extremo oposto. Trepou. Atravessou a fronteira entre ruas, através de uma abertura na base de prédios em desalinho. Adiante viu o parque a desenhar-se velho, um abandono de folhas de choupo no lugar dos baloiços em que um dia voou para lá e para cá embalado pelos braços do pai, um blusão de ganga, mãos mornas de carinho e um bigode a estender-se em sorrisos verdadeiros. Virou à direita. Quatro caminhos. Escolheu a rua que o levaria a um cais da estação e a um comboio com destino à mulher que o amara por todos os poros. Havia a urgência de lhe beijar a testa.