24 novembro, 2010

tiny pillows

E i-los aí. As camisas brancas, os botões de punho, as gravatitas, os sapatos negros e luzidios como o unto malsão que lhes corre nas artérias e os relógios a tinir nos pulsos quebradiços. Ei-los aí a babarem-se, às gargalhadas, quando alguém da matilha sugere que se capitalize a ocasião.
- Ó Sá e Cunha, ouve lá, pá, vê lá o que achas desta ideia, pá. E que tal vestirmos uns gajos de vermelho, pá? E que tal dar a um uma bandeira, pá, estás a imaginar, pá? Vermelha, pá, a imitar essa choldra dos sindicatos, ou os comunistas, pá. E que tal dar a outro uma resma de catálogos? Juntar assim uns quantos, a recibos verdes ou a pães com manteiga e pacotes de leite com chocolate, à beira de semáforos no Cacém, ou na Tapada das Mercês, como os romenos, mas sem um farrapo de cartão canelado a anunciar três filhos e fome, pá. A aviar panfletos com fotografias de televisores pelos vidros dos carros, pá, talvez uma ou outra mamalhuda de Leste a enfeitar as margens do papel, pá. Baixámos os preços para si, que hoje não foi trabalhar, ou outra coisa do género. É a greve, pá. É preciso aproveitar a greve, pá.

11 novembro, 2010

queluz

Se lhe adivinharem o caminhar quebrado numa das linhas de fronteira dos Quatro Caminhos, à porta da leitaria, ou num passeio da Dom Pedro IV, a espreitar as caixas de morangos e o sorriso celestial da Preciosa, digam-lhe que ainda a espero num baloiço do parque, entre o ocre das folhas mortas, um par de galochas vermelhas, uma camisola de lã, que está frio, e a asa de um bombardeiro Vickers Wellesley a despontar do papel de uma pastilha Gorila. Digam-lhe que ainda não consegui preencher o vazio das horas tardias, sozinho com a memória da sua mão sobre o meu ombro. Tão-pouco imitar-lhe a bondade.

litania

L evanta-te, veste-te, lava-te, despede-te, sai, fecha a porta, desce, sai, apressa-te, entra, identifica-te, afunda-te, senta-te, escreve, com força, mais, levanta-te, sai, regressa, depressa, entra, sobe, torna a entrar, come, despe-te, deita-te, adormece, sonha, não morras, que a manhã não tarda.

06 novembro, 2010

influenza

O que mais me enfada nesta gripe de Novembro é a cadência das gotas de muco translúcido que se insinuam das narinas para os lábios, uma após a outra, a que se seguem outras tantas, dos lábios para o queixo e daí para a camisola, um prurido de aranhiços ou um rumor de fumarolas, tanto faz, nos seios perinasais.

Pingos salobros como a água da torneira em Portimão, quando as sardinhas brotavam à vista de todos em baldes convexos e negros dos porões das traineiras, os cascos garridos a estalarem de escrófulas e retalhos de algas. A mão do meu avô a guiar-me entre peixeiras, domésticas e gatos escalavrados sobre uma carpete de escamas na lota. O resto é sofrível: o cansaço; o peso de coníferas milenárias nas omoplatas e nas rótulas; este sopor de antipiréticos que me deixa exangue; este farrapo gemebundo de humanidade.