13 março, 2013

redenção


Q uando me abraça, o meu filho consola-me com palmadinhas nas costas. E sorri, os olhos de amêndoa a cintilarem e os dentitos de leite a sublinharem-lhe a traquinice. Depois larga a correr trapalhão, na alegria irrepetível dos bebés. Designa com o indicador pequenos livros de dinossauros, do Rei Leão, do Mickey e do Donald. Trá-los. Domina as histórias de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Mas senta-se ao meu colo para que eu as desfie. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. As vezes que ele quiser. O meu filho aprendeu há dias a dar beijinhos à esquimó. Se a mãe faz menção de querer um beijinho à esquimó, ele jamais deixa de estender o nariz ao pai. E a quem estiver à ilharga. O meu filho sorri não importa a quem. É plural. Embora pareça sorrir mais a loiras. Não sabe distinguir a maldade. É puro como a água de uma fraga remota. Confio-lhe o meu coração ao sair pela manhã. Devolve-mo lavado e preenchido quando regresso a casa.

12 março, 2013

legionela


D escalçou sapatos e meias, substituindo-os por um par de chinelos de borracha. Meio-dia. Um vago incómodo no intervalo dos dedos. Removeu o colete de lã, a camisa de flanela e as calças de bombazina, vestindo, em alternativa, uma túnica furtada à metade do guarda-fatos reservada à mulher. Uma agilidade de corista entre números. Estava sozinho. Era seguro. Cingiu a cintura com um cinto de couro. Da mulher. Apontou à sala, onde ergueu a pele de vaca que cobria parte do que lhe parecia um mosaico. Colocou-a sobre os ombros. Seguiu para a cozinha, onde improvisou um capacete com a saladeira e a pluma com uma porção da vassoura. Da faca do pão fez um gládio. De regresso à sala, trespassou a almofada de veludo. Depois sentou-se ao computador para actualizar o curriculum vitae.

05 março, 2013

comichão


H á uma inquietação filosófica que me surge teimosa entre as paredes do crânio: e se uma destas manhãs os mandasse a todos para o caralho?