24 abril, 2006

repartição (um)

Não tenho o coração fechado. Posso dizê-lo - pelo menos assim mo garantiram no genuflexório do confessionário, lá do alto de uma sobrepeliz sem vestígio de nódoa e num hálito morno de aurora a ressumar de entre maçãs do rosto rosicleres - com a firmeza obstinada do caule de mimosa no verde-viço da adolescência, que só um vento molhado de Abril, soprado de viés e à traição, pode desconsiderar. Mas ando arredio desse mistério alquímico de humidades refulgentes e viscos glutinosos a que chamam de amor consumado; é outro o meu fastígio, um orgasmo higiénico e santo de cenobita, a salvo de incómodos transpirados de peles que não a minha, essa sim, benza-a a pastorinha a profetizar aguaceiros de gerbérias numa agonia de úlceras, nacarada como o tegumento dos anjinhos que adejam colunelos acima no altar da igreja; um êxtase de pequeninas caixas de cartão grávidas de agrafos e grampos em tabletes quebradiças, que ternura, e uma luxúria de clipes num pratinho de plástico que só por um terço de pestana, um triz, um filete de falangeta que o selo branco lancetou, metade de um comprimido de aspártamo, meio coto de cigarro sorvido à pressa, não trinco na voragem da gula, a língua e as gengivas escalavradas na volúpia dos tons chocolate e alumínio do conjunto, o pecado num extremo iluminado da minha secretária – um lupanar guloso à esquina de uma calçada de carimbos e papéis timbrados. Palmada.
Discite justitiam moniti.
Abico o astigmatismo da vista, a maior parte das ocasiões, nas ombreiras de números, os débitos, os créditos e ao fenecer dos meses os vencimentos, que um lintel verde e vermelho-eritrócito – horrorizam-me, imagine-se o meu azar, o sangue e os cateteres, abhorrescere a sanguine, o que me leva a fincar as pálpebras se lobrigo uma maca a nascer entre batas brancas e estetoscópios na garganta glauca do corredor - encima numa pompa de livro de acta em papel pardo: Balancete. Nem sempre, porém, sustenho a sanha dos dentes e a saliva que me unta a mandíbula. E dou por mim a capitular, mondando os repolhos de clipes de polegar ataviado com a dedeira, arredondando-os como a uma sebe até sentir as nascentes dos meus lábios a encaminharem-se para os lóbulos das orelhas num contentamento deslumbrado de pobrezinho a quem acendem, pela primeira vez, uma tripa de luzes coloridas numa árvore de Natal.

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