Tive pai. Palavra que tive pai. Era um par de mãos de cortiça húmida nos extremos de braços que segregavam sangue venoso. Sangue que se quedava coalhado, do vermelho para o castanho e deste para uma podridão azulácea. Era um fiapo de fígado macerado em açúcar, aguardente de mel e vinho novo. O fígado do meu pai chorava, salvo quando a cortiça das mãos me pintava equimoses nas mandíbulas e nas maçãs do rosto, roxas como brincos de princesa a medrar em latas de óleo e garrafões de lixívia que a minha mãe convertia em vasos. Então sorria. Uma vez o fígado do meu pai arriscou um soneto de restos azedos de canja e empadão, os joelhos da minha mãe esmagados de encontro ao linóleo enquanto um pano puído enxugava duas quadras e dois tercetos que consistiam em três moelas e o que me parecia ser uma pevide. O meu pai chamava-se Francisco. Era uma boina a resvalar de uma cabeça que pendia de absentismo a um canto da cozinha, junto ao lume da salamandra, um fiozinho de baba suja a gotejar entre roncos das esquinas dos lábios para a mão de cortiça que lhe sustinha o queixo escalavrado. Era um homenzinho de olhos vagos a imitar alambiques no dia da minha comunhão solene, o corpo insonso e pegadiço de Cristo a cair de espaldas nas minhas mãos em concha e o queixo desdenhoso do meu pai a designar-me dos derradeiros renques de bancos da capela.
- Que pena não ter perdido os tomates para uma mina ou uma bala perdida de um guerrilheiro na Guiné – pensava o meu pai, que era um par de mãos de cortiça húmida nos extremos de braços cobertos de sangue coalhado, pranto artístico da doença que o impedia de saciar os refegos da minha mãe entre lençóis de flanela. – Vira para cá o canjirão, tu – segredava o meu pai numa curva de orelha. – Nem que o untasses de resina – respondia a minha mãe num enfado de acólito na primeira eucaristia de domingo, uma parte de vinho, duas partes de água, uma parte de morte na vida de todos os dias. – Que pena não ter sido partido em dois por um morteiro soviético.
De forma que me acho agora melhor do que o meu pai, apesar de não me lembrar para que servem as ferramentas, de como se corta um caixilho, como se apura a esquadria, de uma noite de sono, como sorrir, como chorar, como amar, do dia em que nasci, mas sobretudo do dia em que morri.