D e ti sabia, naquele tempo, que dormias num recesso da cave que servia aos meus avós de oficina de chapéus, que escrevias à máquina quando o seixo de giz, a tesoura, as formas, os carrinhos de linhas, a fazenda e o ferro de engomar descansavam, a lua a projectar as sombras de um limoeiro e de uma nespereira ao longo da calçada do quintal. Maio, maduro Maio no gira-discos. Que dispunhas livros em geometrias impossíveis sobre pobres estantes. Muitos livros, cravos, foices, punhos ao alto e homens de barba nas capas, títulos difíceis. A um canto do quarto oblongo e de paredes azuis que daí a anos se esboroariam em torrões de caliça, uma torre de revistas Vida Soviética, jovens russas a estalar de uma felicidade de cera, crianças de bochechas escarlates, o campesinato prenhe de marxismo-leninismo. Papéis, muitos papéis nos intestinos de uma escrivaninha que só me atreveria a investigar se te casasses e emigrasses para as estepes geladas da Amadora. O que veio a acontecer. Em suma, no meu entender de criança, eras um mistifório de inexpugnáveis silêncios, enigmáticos esgares, impacientes meneares da cabeça, frases tão raras quanto lapidares.
- São precisas gerações até que nasça um cavalheiro – e poder-se-ia ouvir, juro-o, uma pena do canário a pousar no fundo da gaiola à porta da marquise, ou o resto do Definitivo a esgotar-se em centelhas infinitesimais entre os lábios violáceos do meu avô.
Mas eras também um Sumol de ananás e um prato de tremoços com o Tejo a três passos, cacilheiros para lá e para cá, um rei a cavalo enfeitado de merda de pombo, ruas de Lisboa a trote, táxis pretos e verdes, tanta gente, a minha mão pequena a desaparecer na tua mão de gigante, um curto apertão se ensaiasse uma fuga, um filme de desenhos animados escolhido de um Diário de Notícias, o meu dedo a apontar – é este! – a teu pedido, um blusão de bombazina azul, risco ao lado num cabelo ralo, um bife com batatas fritas na Trindade.
- Portaste-te bem – e um piscar de olho. E um sorriso com tamanha ternura entre tamanha austeridade.
Certa vez foste um banho de mangueira num terraço de Portimão. Depois compraste-me uma marioneta de madeira entre repuxos no coração da cidade, a maresia ao fundo, não imaginas o que me custa não ter aqui à mão aquela marioneta de madeira - uma galinha desengonçada que me fez rir como ainda não voltei a rir -, de modo a poder manter-te por perto, se é que me percebes, a minha mão a desaparecer para sempre na tua mão do Rossio para a Praça da Figueira, da Rua Áurea para o Terreiro do Paço, do número 11 da D. Pedro IV até à Praça Vermelha, às cavalitas do urso Misha, ou dos Quatro Caminhos até às estrelas, à boleia de Gagarine. Até logo, tio Carlos.