30 dezembro, 2011

janeiras

A mílcar Barca desenhava a órbita de Calisto num guardanapo de papel enquanto a mulher aproximava o isqueiro de um coto de acendalha entre duas pinhas na lareira, a um extremo da sala de jantar. Um pequeno halo. Em breve chamas a lamberem o azinho. Encostado à cristaleira, um pinheiro de Natal a desfazer-se em tiras verdes. Tapada das Mercês. No quarto mais exíguo do quinto direito, a avó confiava a dentadura a um copo de vidro espesso sobre a mesa-de-cabeceira. O avô gemia debaixo de um cobertor eléctrico. Peidava-se amiúde. Depois tornava a gemer. Angina. Dali a três dias e metade de uma noite tombaria morto no mosaico frio da casa de banho ao sacudir o pénis depois de ordenhar a urina possível.
- Morreu o velhote do quinto direito - De quê? - Diz que se apagou a mijar – Homessa – Parece que sim – Não estaria a esgalhá-lo? – Que disparate – Bom, para se morrer basta estar-se vivo – Essa é que é essa – És pó e em pó te tornarás, ou lá como é que se diz – Bonito – Era velho e morreu, pronto – Sabes que mais? – Diz – Quero que se foda.
Na mesa da cozinha, Júpiter já se agigantava no guardanapo quando Asdrúbal irrompeu das ombreiras. Montava um triciclo de plástico. Pediu uma carcaça com manteiga. O pai mandou-o dar uma curva.

30 novembro, 2011

califado

luminária

Nota introdutória: o cenário é a Assembleia da República; trata-se de uma audição de finais de Outubro, dedicada à estratégia do Governo de Pedro Passos Coelho para os transportes públicos, em sede de Comissão Parlamentar de Economia e Obras Públicas; o interlocutor do ministro da Economia é o deputado comunista Bruno Dias; o amanuense que sai em socorro de Álvaro Santos Pereira é Sérgio Monteiro, secretário de Estado dos Transportes.

02 julho, 2011

cento e treze

E screve qualquer coisa. Anda, rapazote. Acopla as nádegas à cadeira, chega-te à frente. Não sejas imprestável. Sempre a pensar em mortes de agonia. O unto a desenhar cristais nessas artérias de freira entrevada. Anda, gordo. Mexe-te. Que as análises não estavam grande coisa e a tensão oscilou como uma báscula de circo. Estás tramado. Olarilolela. Eu seja ceguinho. Um destes dias fazes menção de erguer o corpo e achas-te paralítico, os vasos a romperem-se-te de um extremo ao outro do coco. Mas vê se escreves. É preciso começar por algum lado. Um passo. Dois. Três. E cais sobre o sofá, pitonisa de subúrbio. Amanhã é que vai ser, não é? Amanhã levantas-te e és um atleta capaz de serrar barrotes com os abdominais. Mas o que marchava, agora, era um pastel de nata.

22 maio, 2011

rigor mortis

S into a urgência do tempo que desaparece no resto da folha de um plátano, no descompasso do peito, vertigem em contratempo pela metade de um comprimido, nas ideias que escasseiam, nos projectos que esmorecem, nas pernas que hesitam, nos livros que não lerei, numa tristeza fácil ao fim do dia, na barriga pendente, na lágrima ágil, na meada de cabelo branco atrás de uma orelha, no alvoroço à minha volta, no resto de água da chuva que já se não vê, na frescura dos outros, na passada alheia, na alegria de um jardim, no Outono persistente dos meus olhos, no beijo de namorados, no pobre com nódoas de urina e sopa nas calças que a solidão levou para um talhão sem flores, na litania gemida de uma velha enlouquecida, na saudade que dá corda a um relógio cá dentro, na pena que me dá um cão magro ao amanhecer, na percepção de que tudo isto acabará um dia. Amanhã?

28 abril, 2011

gineceu

Q uatro horas. Madrugada. Um minuto depois de outro minuto numa cadência verde. Insónia. A almofada encharcada em suor e Conte de uma têmpora para a outra. Têm sido assim as minhas noites, doutor. Estarei grávido?

01 janeiro, 2011

2011

A lfredo Babugem, o profeta da Damaia, começará dentro de dias a trabalhar na invenção de um engenho voador, a que dará o nome de gastrópode celeste, movido a fezes de gato, palha-de-aço e pevides de melão, capaz de transpor a linha do comboio, os torreões do aqueduto, a rotunda e os cruzamentos, os prédios húmidos, uma mulher de robe a sacudir tapetes, os mamilos num sobe e desce de encontro aos carris de alumínio das janelas da marquise, a coberto do feltro, a secura da pele a sumir-se pela manhã fria em grumos de creme Nívea, um precioso diadema de plástico escondido entre meias de vidro na primeira gaveta de uma cómoda, perto de uma caixa de fósforos enfeitada de massinhas e guache, a caixa desliza e revela uma madeixa de cabelo e um dente de leite, uma máquina de lavar roupa alada que aterrará com a suavidade de um dirigível à beira da ruína de um moinho, onde Alfredo escutará em êxtase de oráculo a sinfonia melancólica dos subúrbios, o vento de Janeiro a assobiar em lá menor por entre caixotes de lixo e bengalas em contratempo à porta de um centro de saúde.