14 agosto, 2019

dialéctica


A lvitrar é um verbo transitivo. Em nada se relaciona com a indústria do vidro.

Um palimpsesto é um manuscrito em pergaminho cuja edição remonta à Idade Média. Não traduz uma variante pós-moderna ou neo-barroca de práticas sexuais ente familiares.

Ilíaco é, além de um osso, um vocábulo proparoxítono.

Um palhaço pode ser pobre, rico ou apertar as calças de ganga abaixo da pélvis e das nádegas, perambulando pelas ruas como se sofresse de uma malformação congénita na base da coluna.

Oremos, sim. Mas a quê ou a quem? Proponho o carbono, elemento ubíquo no universo conhecido.

13 agosto, 2019

acta


A os vinte e dois dias do primeiro mês do ano corrente, realizou-se na sala de condóminos do prédio sito nesta rua, que se assemelha ao Mekong a escorrer untuoso Camboja abaixo, uma velha lancha americana a gemer de ferrugem numa das margens, próxima do café Asdrúbal e da engomadoria de Natália, mestre em hermenêutica convertida em artesã dos colarinhos e dos adamascados, e o próprio prédio um pagode a esboroar-se em caliça e fragmentos de folha de ouro, a assembleia geral destinada à aprovação das contas do ano predecessor. Os condóminos manifestaram a sua concordância relativamente às parcelas que lhes foram apresentadas, até ao momento em que o condómino do segundo direito principiou a perorar no sentido de uma silhueta esguia como estatuária egípcia no topo de uma colina, para lá de um campo de arroz armadilhado, encaminhando-se de seguida para aí, calcando uma mina que acabou por se lhe explodir à latitude da cintura, num amplexo cortante que o lascou a meio. O que não o impediu de ensaiar uma litania contra a cor designada para a pintura da fachada, que considerou demasiado exótica e pouco sóbria, fim de citação.

08 agosto, 2019

Lúcia


Portão. Ferro consumido pela morrinha de manhãs de Outono. Eu. Um caminhar hesitante entre ciprestes e sobre a gravilha de um caminho que aponta à capela do cemitério. À esquerda a miniatura de uma campa e em redor um par de brinquedos de plástico consumidos pela morrinha de manhãs de Outono, um triciclo e um balde de praia. Um livro aberto em pedra. Eterna saudade a cinzel. À direita jazigos. Espreita-se e adivinha-se rendas, arranjos de flores mortas como o teor dos esquifes que preenchem estantes, fotografias a sépia, castiçais esquecidos. Adiante degraus. Em plano inferior, terra revolvida. O cheiro a humidade da morrinha das manhãs de Outono. Sobre o triângulo escaleno de terra, uma ruína de cravo. Um, dois, três corredores de alcatrão ladeado por calçada. À esquerda. Depois à direita. O topo de um cipreste, no topo de gavetas de ossos, no topo de uma colina a sobrepujar Queluz. E a tua fotografia à altura dos meus joelhos, antes de estes se desmoronarem no sentido do lancil. Antes de tudo isto havia uma vida que consistia numa cafeteira ao lume, numa lata com bolachas, num canário a imitar flautas à entrada da marquise, nas tuas mãos a remirem-me das dores de crescimento com álcool etílico ao longo das tíbias, ao que se seguia um sopro gentil como a morrinha de manhãs de Outono, num pregar de botões, numa torre de panamás destinados a um colégio, num par de óculos abandonados no sofá. Eu. A tua estação terminal neste rectângulo de mármore. Portão fechado.

desfibrilhador


Trata-se de reaprender, em suma. Percebam - rogo-vos como um desses peregrinos a estalar de joanetes e chagas sortidas, o terço a escorregar dos dedos como um unto de motor - que deixei de escrever. Confiei a caneta ao exílio de uma caneca, a um extremo da secretária, e a vontade ao nicho de uma cuvete no congelador, entre sacos de ervilhas e calamares. Eis a razão por que tudo isto vos soa a um quinteto de violinos recalcitrantes, como numa festa de fim de ano lectivo.
- Ai que bem que toca o meu Santiago – e o telemóvel ao alto a registar o dó menor em lugar do sol maior, o Santiago incapaz de acertar um compasso sem que lhe caiba a culpa, que pertence a quem entendeu que o Santiago poderia tornar-se o Niccolò Paganini de Chelas, uma salva de palmas de gente que se contorce em cadeiras quebradiças, o Santiago a empregar o arco do violino na remoção de monco seco de uma narina.
Veremos. Veremos o que daqui sairá.

03 julho, 2016

vou ali e já venho


Por mim, afastem-me o cortinado, arredem o alumínio da janela e atentem bem - num pasmo de turista a observar pela primeira vez um embondeiro - no voo picado que ensaiarei prédio abaixo, o umbigo a roçar, uma, duas vezes, a tinta da fachada. Um estrondo de melancia no alcatrão e os vizinhos a romperem das marquises de mãos nos parietais. E o cão da dona Alice do rés-do-chão a largar na minha direcção, lambendo depois com gosto o regato escarlate rua abaixo. A ambulância a uivar rua acima com a mais desnecessária das pressas, dado que já não estarei disponível para responder a perguntas que envolvam porquês. Quis ir da janela do meu quarto até aos terraços do outro lado. Sem uma asa-delta para amostra, não fui capaz. Pronto. Podem ir às vossas vidas.

17 setembro, 2014

funeral víquingue


D e ti sabia, naquele tempo, que dormias num recesso da cave que servia aos meus avós de oficina de chapéus, que escrevias à máquina quando o seixo de giz, a tesoura, as formas, os carrinhos de linhas, a fazenda e o ferro de engomar descansavam, a lua a projectar as sombras de um limoeiro e de uma nespereira ao longo da calçada do quintal. Maio, maduro Maio no gira-discos. Que dispunhas livros em geometrias impossíveis sobre pobres estantes. Muitos livros, cravos, foices, punhos ao alto e homens de barba nas capas, títulos difíceis. A um canto do quarto oblongo e de paredes azuis que daí a anos se esboroariam em torrões de caliça, uma torre de revistas Vida Soviética, jovens russas a estalar de uma felicidade de cera, crianças de bochechas escarlates, o campesinato prenhe de marxismo-leninismo. Papéis, muitos papéis nos intestinos de uma escrivaninha que só me atreveria a investigar se te casasses e emigrasses para as estepes geladas da Amadora. O que veio a acontecer. Em suma, no meu entender de criança, eras um mistifório de inexpugnáveis silêncios, enigmáticos esgares, impacientes meneares da cabeça, frases tão raras quanto lapidares.

 - São precisas gerações até que nasça um cavalheiro – e poder-se-ia ouvir, juro-o, uma pena do canário a pousar no fundo da gaiola à porta da marquise, ou o resto do Definitivo a esgotar-se em centelhas infinitesimais entre os lábios violáceos do meu avô.

Mas eras também um Sumol de ananás e um prato de tremoços com o Tejo a três passos, cacilheiros para lá e para cá, um rei a cavalo enfeitado de merda de pombo, ruas de Lisboa a trote, táxis pretos e verdes, tanta gente, a minha mão pequena a desaparecer na tua mão de gigante, um curto apertão se ensaiasse uma fuga, um filme de desenhos animados escolhido de um Diário de Notícias, o meu dedo a apontar – é este! – a teu pedido, um blusão de bombazina azul, risco ao lado num cabelo ralo, um bife com batatas fritas na Trindade.

- Portaste-te bem – e um piscar de olho. E um sorriso com tamanha ternura entre tamanha austeridade.

Certa vez foste um banho de mangueira num terraço de Portimão. Depois compraste-me uma marioneta de madeira entre repuxos no coração da cidade, a maresia ao fundo, não imaginas o que me custa não ter aqui à mão aquela marioneta de madeira - uma galinha desengonçada que me fez rir como ainda não voltei a rir -, de modo a poder manter-te por perto, se é que me percebes, a minha mão a desaparecer para sempre na tua mão do Rossio para a Praça da Figueira, da Rua Áurea para o Terreiro do Paço, do número 11 da D. Pedro IV até à Praça Vermelha, às cavalitas do urso Misha, ou dos Quatro Caminhos até às estrelas, à boleia de Gagarine. Até logo, tio Carlos.

13 março, 2013

redenção


Q uando me abraça, o meu filho consola-me com palmadinhas nas costas. E sorri, os olhos de amêndoa a cintilarem e os dentitos de leite a sublinharem-lhe a traquinice. Depois larga a correr trapalhão, na alegria irrepetível dos bebés. Designa com o indicador pequenos livros de dinossauros, do Rei Leão, do Mickey e do Donald. Trá-los. Domina as histórias de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Mas senta-se ao meu colo para que eu as desfie. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. As vezes que ele quiser. O meu filho aprendeu há dias a dar beijinhos à esquimó. Se a mãe faz menção de querer um beijinho à esquimó, ele jamais deixa de estender o nariz ao pai. E a quem estiver à ilharga. O meu filho sorri não importa a quem. É plural. Embora pareça sorrir mais a loiras. Não sabe distinguir a maldade. É puro como a água de uma fraga remota. Confio-lhe o meu coração ao sair pela manhã. Devolve-mo lavado e preenchido quando regresso a casa.

12 março, 2013

legionela


D escalçou sapatos e meias, substituindo-os por um par de chinelos de borracha. Meio-dia. Um vago incómodo no intervalo dos dedos. Removeu o colete de lã, a camisa de flanela e as calças de bombazina, vestindo, em alternativa, uma túnica furtada à metade do guarda-fatos reservada à mulher. Uma agilidade de corista entre números. Estava sozinho. Era seguro. Cingiu a cintura com um cinto de couro. Da mulher. Apontou à sala, onde ergueu a pele de vaca que cobria parte do que lhe parecia um mosaico. Colocou-a sobre os ombros. Seguiu para a cozinha, onde improvisou um capacete com a saladeira e a pluma com uma porção da vassoura. Da faca do pão fez um gládio. De regresso à sala, trespassou a almofada de veludo. Depois sentou-se ao computador para actualizar o curriculum vitae.

05 março, 2013

comichão


H á uma inquietação filosófica que me surge teimosa entre as paredes do crânio: e se uma destas manhãs os mandasse a todos para o caralho?