21 novembro, 2012

assim


Tengo, vamos a ver,
que no hay guardia rural
que me agarre y me encierre en un cuartel,
ni me arranque y me arroje de mi tierra
al medio del camino real.
Tengo que como tengo la tierra tengo el mar,
no country
no jailáif,
no tenis y no yacht,
sino de playa en playa y ola en ola,
gigante azul abierto democrático:
en fin, el mar.

Tengo, vamos a ver,
que ya aprendí a leer,
a contar,
tengo que ya aprendí a escribir
y a pensar
y a reír.
Tengo que ya tengo
donde trabajar
y ganar
lo que me tengo que comer.
Tengo, vamos a ver,
Tengo lo que tenía que tener.

Nicolás Guillén
"Tengo", in "Obra Poética: 1958-1972"

11 agosto, 2012

salão playboy

H avia quatro camisas castanhas de manga curta com pequenos bolsos que anunciavam bordaduras de nomes de samurais alentejanos. Joaquim, Fernando, António. Estes nomes. Talvez. Os três de risco desenhado sobre as curvas das orelhas, fios de cabelo domados a borrifos de brilhantina. Um ribatejano apenas. José. Talvez. Há tantos anos. Denunciava-se com as patilhas brancas a apontarem as narinas numa imperfeição de escalenos e por um arquear de joelhos próprio de quem em tempos rabejara. Por vezes um pasodoble num assobio de melro. Havia pentes que espreitavam dos bolsos. O contínuo suspirar metálico de tesouras entre calos, lâminas tão perigosas como a espada de Yoshiteru. Afiava-as um amolador que aos domingos de manhã passava uma flauta de Pã pelos beiços afilados. De nascente a poente. De poente a nascente. Havia um cheiro de sovacos de proletário, de laca e Aqua Velva, tufos de cabelos pelo chão de linóleo que os pés dos samurais iam arrumando à medida que descreviam piruetas. Um quebra-nozes de subúrbio em redor de cadeiras que acomodavam cabeças a nascerem de batas cinzentas, sobre pescoços protegidos por toalhas surradas. Um, dois, três golpes de toalha na napa do estofo.

- Queira sentar-se. Então como é que vai ser? – e um odor vago a guisado e a Definitivos no hálito.

Seria curto. Orelha destapada. A delicadeza do pente quando tudo estivesse acabado, as cerdas de um pincel a espalharem talco pela nuca, o suão do secador que enfunava a poupa em ademanes de retrato barroco, um ténue inclinar da cabeça como despedida. E a alma muito mais redimida do que à saída da igreja de Queluz, depois de um acto de contrição tão oco como o tubo de plástico através do qual soprava pedacinhos de papel mastigado ao investir contra exércitos imaginários no quintal da minha avó. Tenho muita pena de Vos ter ofendido, mas tenho ainda mais pena de ter visto partir os samurais, um após outro, para o mesmo ocaso onde um dia acabaria por depositar a infância.

28 maio, 2012

dez meses


Passei a medir-me pela largueza do sorriso do meu filho. Há raios de luz no sorriso do meu filho. Céus que se rasgam. Nuvens que desaparecem. Regatos de chocolate no sorriso do meu filho. Bolachas com recheio de baunilha. As migalhas a precipitarem-se pela camisola de lã. A pastilha esférica que descobria em pequeno no fundo de um Epá. É lá que moro. No sorriso do meu filho. É no sorriso do meu filho que quero adormecer. E acordar. Até ao dia em que não poderei mais fazê-lo.

10 janeiro, 2012

xangri-lá

J ulião deparou-se com uma gaivota moribunda na Rocha Conde de Óbidos e largou a correr para casa. Sem despir o anoraque, sentou-se ao computador para narrar no feicebuque o místico episódio da ave que morria. Depois, ainda mal refeito, comeu uma bolacha de canela e bebeu um copo de leite.

No feicebuque de Natália há fotografias de Natália. No feicebuque de José há fotografias de José. No feicebuque de Maria há fotografias de Maria. Maria é amiga de José e de Natália. Já José é apenas amigo de Maria. Ao passo que Natália é também amiga de Julião. No feicebuque.

Mário gosta de se ver de óculos escuros e tronco nu no feicebuque. Antónia marcou um encontro com Mário. Através do feicebuque, onde encontrou Mário de óculos escuros e tronco nu. Na Costa de Caparica. Ambos leram a história da gaivota que expirava lentamente na Rocha Conde de Óbidos. Por via do feicebuque de Julião. Ela enterneceu-se. E chegou a chorar. Ele muniu-se de um palito para extrair de uma fissura entre incisivos um teimoso filamento de carne assada que ali se aninhara ao almoço.

02 janeiro, 2012

tu e eu

S e acordo cinzento, o teu sorriso expurga-me de sombras. Se perco o sentido, o cristal nos teus olhos devolve-me ao caminho. Se o dia gotejou lento como melaço, encontro-te ao chegar a casa e renasço. Não me deixas dormir. Não faz mal. Porque me perderia se te perdesse. E isso que seguras agora entre as mãos, como se fosse um dos teus brinquedos de peluche ou o último biberão da noite, é o meu coração.