28 dezembro, 2007

natal

«sem ver quantos umbigos há em redor do meu umbigo.»
Quotidien Latin


De modo que ao comer uma azevia percebi que é o açúcar acumulado nas esquinas dos lábios aquilo que mais colide com esta minha forma de ser assim organizado, três pares de colheres para norte, três pares de colheres para sul, as facas para leste, onde a invernia torneia mamas do mais delicado mármore e talha rostos de massapão e açúcar em pó, e os garfos para ocidente, à falta de melhor azimute onde enterrar forquilhas; marines, evangelistas e a puta que os há-de parir gemebundos consoante os espigões nas nádegas e nas pregas do ventre. Há também a suma ruindade de um citrino cristalizado sobre a quitina de um bolo rei e destas três broas castelares esófago acima esófago abaixo, esófago acima esófago abaixo, eu um tentilhão a vomitar a levedura de broas castelares no sentido de um tentilhão de pena rala que não existe para lá da tenda de circo que trago montada no hemisfério esquerdo, uma vez que a progénie está ameaçada por esta forma de ser assim organizado, uma vertigem e uma gotícula de suor à temperatura de Moscovo e dos mamilos que irrompem da estação Ploshchad Revolutsii, pequenas protuberâncias de gelo rubro a designar o caminho em diante, se a lombada de um livro se destaca das lombadas dos demais livros na estante dos livros, porque a estante é para os livros; uma ocasião comovi-me com o Solzhenitsyn entre o Cunhal e um tomo do Vladimir Ilitch Ulianov mas deixei-o quieto num conforto de bolores e azebre, na expectativa de que acasalassem e dessem à luz uma quarta via, que de caminho faria da Amadora um lugar de peregrinação, cortejos de pâncreas, rins e nódulos linfáticos esculpidos em cera, de Alfragide ao alto do Casal de São Brás; e diga-me o que o trouxe aqui; foi a fé no menino milagre parido pela garganta afásica de Lenine.

30 novembro, 2007

prolapso

Carolina colheu um pé de urtiga por cuidar que se tratava de hortelã.

António acordou, levantou-se e nunca mais foi visto.

Rute nunca gostou de se chamar Rute por razão alguma, salvo a de Rute ser um nome de que nunca gostou.

Amélia gosta de se chamar Amélia.

Luís faleceu electrocutado ao ataviar a árvore de Natal com luzes de Natal.

Heitor perdeu a fé na medicina oriental quando lhe receitaram acupunctura para a fimose.

Orlando também é conhecido pela alcunha de O Gerúndio.

07 novembro, 2007

altar

Adelino trocou as mãos por garras de jaguar com a mesma prontidão com que retesou as bochechas e os lábios num sorriso de palhaço pobre, um rubor de vinho tinto a imitar pigmentos de camarim e pálpebras a ameaçar uma explosão de lágrimas e sangue – o que o confinaria, é certo, a um canto esquálido da serralharia, altar improvisado. Adelino choraria então milagres de compota, amiúde polpa de tomate, ao que os seus amigos e devotos responderiam com oferendas de maçãs reinetas, uvas e diospiros em travessas de estanho, testos de barro preto e calhas de alumínio. Adelino levantaria uma das patas de felino numa continência de alferes em horto minado, abençoando varicoses, chagas de silvas e adenóides embargados. A serpentina de gente perder-se-ia para lá dos cumes do Açor, estradas e carreiros seriam veios de aflição e os demónios tombariam esconjurados com um sorver de babas celestiais.
Mas Adelino prefere adernar em cais de folha e fórmica, praticar o milagre do fígado e da locomoção bípede, a ansiar o dia em que a desordem cósmica dos alambiques possa devolvê-lo ao abraço complacente da morte, as mãos enfim livres e o rosto carregado de verdade triste.

05 novembro, 2007

lírio (dois)

O pior de tudo isto é a espera. Arrasto-me a adivinhar o teu rosto na saudade dos meus dedos, num vinco da camisa, a desenhá-lo com os extremos dos talheres no azeite do leito de um prato. A tua pele de persa estende-se agora pelo chão, pelas paredes, pelas molduras, pelos puxadores das portas, pelos meus lençóis sozinhos. É só fechar os olhos, vê bem, e sinto-a aqui nesta folha de papel. Levito no allegro de Rodrigo e encontro-te entre águas-furtadas, numa varanda bordada a ferro, o Tejo a passar as mãos pelo teu cabelo com um vento de caramelo, salsugem e gaivotas. Então sonho-te um sorriso debruado a luz. Sonho-te, se o preferires, aninhada no meu peito, agora que o allegro deu lugar ao adagio e a minha senha segue em taquigrafia numa valsa de satélites, à vista de uma lua mais branca que o branco destes prédios, numa rua que tarda em ser minha. Por ora moro em ti, numa assoalhada do teu peito, um catre, uma mesa de cabeceira, uma secretária e sobre esta uma jarra com flores.
- Uma vida inteira à espera.
Ontem, por exemplo, vi-te na lombada de um livro. Daí a nada numa luz oblíqua que esculpiu talhas douradas nas minhas estantes e foi ao ponto de acender Cervantes, en dulcísimos conceptos, la dulcísima Poesía, envergonhado sob as botas cardadas de comunistas chineses. A minha espera é feita disto: de madrigais e de um cinzeiro que não quero limpar. De modo que continuas por aqui, numa leveza de nuvem virgem, talvez de uma cadeira para outra e daí para os meus braços incrédulos.

29 outubro, 2007

bílis

José colhia gastrópodes na berma do itinerário complementar quando sentiu nas nádegas o guarda-lamas de um furgão.

Manuel gostou de ameixas até à passada quinta-feira.

Francisco deixou os andaimes para poder vestir um bibe e aprender renda de bilros.

O avô adormeceu e sonhou com castanhas.

Joaquim susteve o hábito de roer as unhas quando se engasgou com o cúbito.

Dionísio comprou um baralho de cartas.

Félix mediu mal a rotunda e derrubou três pinos de cimento.

A avó limpou o queixo com o pano da louça e a escumadeira com o guardanapo.

28 outubro, 2007

lírio

Descobrir-te no Outono é mel a escorrer dos canteiros do meu bairro, cães sem tecto que ganham asas, juro-te que as vejo romper dos dorsos, e esvoaçam como anjos entre a alvenaria de subúrbio, um caminhar de sacristão em horas proibidas, o vento a ganir frio, como os cães de algeroz em algeroz, e eu do lancil para o alcatrão, do alcatrão para o passeio, avenida acima, uma inclinação a estibordo e os salgueiros sopram-me o teu nome, juro-te que o percebo neste murmúrio da madrugada. É também acordar e apontar ao sofá para recolher um, dois fios de cabelo, e aquietar-me ali mesmo a ver se ainda te adivinho de mão para mão, a ponta do teu dedo a sossegar-me as falanges antes de um enlace de morte doce, encontrar-te longe, tão longe que nem os anjos quadrúpedes em voo elíptico sobre marquises poderiam resgatar-te e devolver-te aos meus braços, cheios de um vazio de trompete no breu do estojo. É demorar-me no beiral de um copo, nas fendas dos teus lábios de uva, e querer nascer, repetir-me até este Outono.

22 setembro, 2007

diástole

«Jean-Pierre morria entretanto, pronunciando em tom baixo e muito calmo Obrigado. Obrigado
Paulo Amaral


Lateja. Ainda não chega para acordar, mas já lateja. O que quer que seja. Digo-vos que lateja.

02 fevereiro, 2007

leannán-sidhe, intermezzo

Salmão baço, as sancas da cozinha são em salmão baço. Das paredes ressumam bolores, veios de humidade negra, úlceras de caliça e perto do fogão as manchas de uma golfada de óleo candente. Pescadinhas de rabo na boca. Sobre um dos bicos do fogão uma cafeteira e nela borras movediças. Pegas de pano e lã, frasquinhos de sais de frutos, um arco-íris de medicamentos dentro de uma caixa de plástico e um transístor de ventre suturado por um elástico baio. As moscas recolhem ao globo de vidro do candeeiro para morrer, uma mosca, duas moscas, três, quatro, cinco, seis, as patas tísicas voltadas para cima. Por fora, numa translação bêbeda, uma borboleta, Smerinthus ocellatus. A lâmpada hesita e com ela uma garrafa de licor de ginja na prateleira mais alta, um pequeno cesto com nêsperas na prateleira mais baixa, quatro ripas de pinho que formam uma casa e na varanda uma vela lilás e uma caixa de fósforos Quinas. Os pratos repousam molhados em três sulcos nas varizes do mármore. E as tuas mãos desaparecem na espuma enquanto uma esfera de sabão levita numa indiferença de planeta estéril. Uma bata e chinelos de pano. Tu. Eu. Isto.

01 fevereiro, 2007

leannán-sidhe (dois)

Belém e o infante a tirar a bissectriz à Cova do Vapor do alto da pedra de lioz, o primeiro domingo de Janeiro é Belém e o infante à proa. E tu és uma gota de Tejo, um limo no cais, uma lapa na quilha de um cacilheiro, enfim, uma mandíbula gretada, vestígios de galão nas esquinas da boca, um pingente de latão, uma lágrima de manteiga na lapela do casaco castanho. E ris. Ris de quê? Desse vazio entre têmporas? De que ris afinal? Da primeira vez que percorremos a Augusto Gil - trepámos as escadas do teu prédio cor-de-rosa e depois um pequeno socalco de tijoleira, que ternura, do corredor para o teu quarto perfumado de lavanda e pinhal -, fui tomado por um pânico frio espinha acima de encontro à nuca, enroscando-se em seguida nas amígdalas, a tal ponto que regredi aos tropeções pelo corredor, escalavrando tapetes de Arraiolos, uma jarra de camélias de plástico e um mosqueteiro de feldspato, e por pouco não profanei os girassóis nos azulejos da casa de banho com os salmonetes em liquefacção que nadavam contra a corrente do meu esófago. E então?
- Hoje estou bonita, não estou? Diz lá, jóia, se não estou bonita? – e atravessas o estrado da esplanada a lancetar pálpebras com a hipérbole da blusa, uma velha equilibrista pequinesa a dominar bica, bule e rissóis de camarão nas pontas das artroses, e esse chapéu de palha, puta que o pariu, a deixar antever um zimbório de cabelo tingido.
- Faço votos de que conte muitos – proclama-se por perto sobre o bocal do telefone, no superlativo babado que a solidão ensaia; no extremo da mesa um pires em flor, as pétalas, suponha-se, uma desordem mundana de guardanapos e restos de pacotinhos de açúcar.
E o infante de bigode ao Sol na ponta exígua de uma caravela ancorada em lodo. Os teus lábios projectando-se uma, duas, três vezes para os miasmas do chá sem consumar o beijo. Então contemplas no rio a passagem de contentores amontoados num convés.
- Não tem importância, jóia. Deixa lá. Acontece – os teus dedos percorriam-me o cabelo num consolo de ama preta; de modo que me senti na obrigação de te explicar que os médicos tiveram de induzir na minha mãe um coma transitório, porque não havia meio de eu nascer, porque não queria sair e isso era tudo.
O primeiro domingo de Janeiro é, agora, o cair das vinte e trinta e dois no relógio de corda sobranceiro ao aparador. Inverno relutante. Uma constipação azul na ponta da esferográfica, que se detém estúpida sobre a folha de jornal. Dez, vertical: Feixe de palha em que se envolvem objectos frágeis para se não quebrarem com o transporte.

leannán-sidhe (um)

«Há sempre, após a morte de alguém, como que uma estupefacção que se liberta, tão difícil é compreender essa invasão do nada, e resignar-se a acreditá-lo.»

Gustave Flaubert - Madame Bovary


Feltro e veludo, as almofadas são feltro e veludo. Excepto aquela ali, um cágado ocre urdido de espessa cordoalha de lã, numa agonia de nódoas de café com leite e migalhas de bolachas. Água e sal. Baunilha. Do tinto da alcatifa surde um caule de pau preto e no lugar da ramagem há, imagine-se, uma pantalha de cartão estampado, note-se, e nela um céu de fim de tarde, suponha-se, mulheres macondes quase sombras, sem olhos e de mamas murchas, uma tabanca difusa engastada em restos de machambas, jacas na mão de um régulo. De modo que a luz nasce dos filamentos incandescentes de Cabo Delgado e vai acender as órbitas vazias de um Guerra Junqueiro em gesso acobreado, um tronco sem braços e até um arremedo de azebre na bainha das barbas. No coto da omoplata o peso de livros e nos antípodas da prateleira um galeão de filigrana a vogar em mares alterosos de croché de encontro a pequenos galgos de loiça.
- O que é que se come nesta casa? – e o canto da folha de jornal faz-se sombra por cima do soba no apocalipse do candeeiro – Açorda – ouve-se da marquise, e nisto a consulta do obituário revela dois cocuanas acocorados entre a vegetação.
Ocorre-me agora que esta cidade é um murmúrio seco, um lamento de criança para lá das persianas de um primeiro andar, uma montra sórdida, um casal de manequins, íris e retinas de vidro que nos seguem o caminhar penoso à procura de um porto de abrigo. Esta cidade que desaparece na noite é, dizia, um murmúrio, tão triste, tão sozinho, tão bordado de penumbras, feito de folhas mortas nos passeios, de um número de porta a fazer lembrar Paris, trinta e sete, primeiro andar, de vento frio na Avenida de Roma.

27 janeiro, 2007

ciutat

Yo soy el dios poderoso
en el aire y en la tierra
y en el ancho mar undoso,
y en cuanto el abismo encierra
en su báratro espantoso.
Nunca conocí qué es miedo;
todo cuanto quiero puedo,
aunque quiera lo imposible,
y en todo lo que es posible
mando, quito, pongo e vedo.

Miguel de Cervantes Saavedra


Passeig de Joan de Borbó, comte de Barcelona. E depois o deslumbre de te saber assim tão grande, tão cheia do que nunca pude produzir cá dentro, neste viveiro de cobardias e hesitações, eu tão pequeno, do tamanho de um grânulo, um fragmento de alvenaria em dois centímetros de Gaudí. Carrer de Pelai. Fala-me dos teus dias, pinta-me aguarelas em cartas escritas à mão, vive o bocado de vida que deixei fugir, tão iniludível este retrato, tu assim tão grande, pés sobre pés de florecillas e sencillas margaritas. Carrer de Jacinto Benavente. O Sol mudou-se para a Catalunha.