05 novembro, 2007

lírio (dois)

O pior de tudo isto é a espera. Arrasto-me a adivinhar o teu rosto na saudade dos meus dedos, num vinco da camisa, a desenhá-lo com os extremos dos talheres no azeite do leito de um prato. A tua pele de persa estende-se agora pelo chão, pelas paredes, pelas molduras, pelos puxadores das portas, pelos meus lençóis sozinhos. É só fechar os olhos, vê bem, e sinto-a aqui nesta folha de papel. Levito no allegro de Rodrigo e encontro-te entre águas-furtadas, numa varanda bordada a ferro, o Tejo a passar as mãos pelo teu cabelo com um vento de caramelo, salsugem e gaivotas. Então sonho-te um sorriso debruado a luz. Sonho-te, se o preferires, aninhada no meu peito, agora que o allegro deu lugar ao adagio e a minha senha segue em taquigrafia numa valsa de satélites, à vista de uma lua mais branca que o branco destes prédios, numa rua que tarda em ser minha. Por ora moro em ti, numa assoalhada do teu peito, um catre, uma mesa de cabeceira, uma secretária e sobre esta uma jarra com flores.
- Uma vida inteira à espera.
Ontem, por exemplo, vi-te na lombada de um livro. Daí a nada numa luz oblíqua que esculpiu talhas douradas nas minhas estantes e foi ao ponto de acender Cervantes, en dulcísimos conceptos, la dulcísima Poesía, envergonhado sob as botas cardadas de comunistas chineses. A minha espera é feita disto: de madrigais e de um cinzeiro que não quero limpar. De modo que continuas por aqui, numa leveza de nuvem virgem, talvez de uma cadeira para outra e daí para os meus braços incrédulos.

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