20 novembro, 2009

escape de rendimento

Ao domingo escancaro os pórticos de centros comerciais com o vigor de um Godofredo de Bulhão, bonjour mesdames e messieurs, o corcel de fibra de vidro a descansar os quadris no estábulo de cimento e amianto, entre carrinhos de supermercado que abrigam restos morrediços de alface e farrapos de papel a anunciar natais de cartolina, baquelite e poliestireno.


No ar um cheiro a cordite, às vezes a cigarros, às vezes a mijo, às vezes a tosses convulsas e a bafios de axila, às vezes um vago gargarejo de Bing Crosby no intervalo dos mugidos do gado graúdo. De forma que apresso a platina das sapatilhas na direcção de ruas intestinas em marmorite, contemplando-me no reflexo das montras, uma corrente de ouro a debruar-me o pescoço sobre a camisola da selecção e o olhar de atalaia à caça de prodígios da anatomia, creio que de plus en plus de femmes s’habillent comme des salopes. Trepo a uma das gáveas e colecciono regos de mamas para memória futura. Depois desapareço num oceano de torpores, sacos e telemóveis, que amanhã tenho um serviço na Bobadela.

16 novembro, 2009

janelas de alumínio

O problema, senhor doutor, verifica-se quando lhe procuro os calcanhares a meio da noite e os encontro frios como há um par de dias, a jazerem como pedras no extremo do colchão apesar da flanela morna, apesar desta calidez de maçã reineta acabada de assar que trago entre as virilhas, apesar de ter pintado as unhas de vermelho sangue de boi, nem queira saber, senhor doutor, o que ele escoicinha quando eu pinto as unhas de vermelho sangue de boi, a afundar o nariz na minha orelha enquanto me segreda nomes feios, sua isto, minha aquilo, a menina portou-se tão mal e outras idiotices, por vezes pede-me que o chame de Eduardo, ele que se chamava Augusto, imagine-se, nunca quis saber porquê com medo de uma resposta que eu conhecia sem nunca a ter escutado, certa vez começou a guinchar, Deus me perdoe, como um porco de criação a arrojar-se-me de encontro às nádegas, sua isto, minha aquilo, e eu a pensar na sopa de feijão ao lume, senhor doutor, juro-lhe que na órbita da colher de pau na sopa de feijão ao lume encontrava uma paz de ciprestes tocados a vento de cemitério, era para aí que os grumos me levavam numa felicidade de abandono, mas há um par de dias que lhe procuro os calcanhares a meio da noite e os encontro frios, pelo que creio, não tenho a certeza, que morreu, apesar dos olhos apontados ao lustre, apesar da mão a fazer força sobre o peito, apesar de ainda o ouvir a chamar-me, tu aí anda cá, de ainda o sentir a designar-me com o queixo, debruçado para os amigos a um canto do café da praceta, aquela ali é a minha mulher, uma chata, abre as pernas amiúde sem grande arte, mas faz uma sopa de feijão que me acalma estas fúrias de licantropo, este ímpeto de a fechar na arrecadação para lhe experimentar os vestidos e as saias, as blusas de cambraia e as meias de vidro, os corpetes e as estolas, os sapatos e os colares cuidando que ela jamais desconfiará.

07 novembro, 2009

látego

Não sei escrever. Esgoto-me em adjectivos. Tropeço antes de chegar ao ponto final parágrafo. Custa-me ser demorado. Aborrece-me ser curto. De ideias e de engenho. De fôlego e de relevância. Um topete de amanuense ao balcão da repartição de finanças. Diga. As frases saem-me das costelas a golpes de chanfalho, por vezes de uma narina em fiapos de sangue. Se chego a metade de uma página, exulto num contentamento de canário. Temos escritor. Olarilolela. De Verão transpiro quadras de manjerico. Ó meu Santo António ó meu Santo Antoninho na Páscoa quero a giesta no Natal o azevinho. De Inverno tossico relatos de almanaque. Delmiro vivia preso a um passado de sordície em vãos de escada e reuniões do partido que são ambientes que no fundo se completam dado que ambos ressumbram essências de putedo. Que. Que. Que. Que. Ó que caralho. Chafurdo nos dicionários. Tal como o porco da minha tia-avó num lodaçal de talos de couve e casca de batata. Até amanhã.

03 novembro, 2009

pietas est fundamentum omnium virtutum

Sinto-a a rondar-me como um tigre fátuo. Um breve rugido entre juncos. Depois uma paz parda de recolher obrigatório. Por vezes um sopro morno na nuca. Anuncia-se aos poucos em efémeras vertigens de crepúsculo, em sístoles e diástoles descompassadas, no cingir do torno em redor da dura-máter, no suor errático, no desconcerto da traqueia. Dizem-me que não. Mas eu conheço-a.

comité central

requiem

Esbarronda-se uma arriba em Tenerife. Morrem duas pessoas. A repórter escreve o texto para a peça de televisão. “As duas mulheres que morreram não conseguiram escapar”, explica. Recordo, imagine-se, um coto de giz carmim entre os dedos da dona Bernardete a rasurar-nos as excrescências da sintaxe num quadro da Escola Primária de Queluz.


22 setembro, 2009

farol

O caminho para o promontório de São Vicente faz-se entre bermas de terracota e tufos de mato estreito, rubores de sol marroquino em peles de albino e línguas ásperas como pigarros de dispensário, aqui três alemães a mastigar pães e salsichas, as bocas escancaradas numa alegria de colesterol à sombra irregular de uma caravana de farturas, acolá a cintura de pipa de uma ave pernalta que regressará a Manchester ao quarto dia do Outono, na mala um sabonete de hotel, uma pequena chaminé que proclamará o Algarve a partir do frigorífico, FRIDGE MAGNETS TWO EUROS!, e um frasco de sais de fruto com areia do Carvoeiro, à esquerda três espanhóis a grasnar, à direita bancadas de camisolas de lã, pequenas rosas do deserto, chapéus de couro e galos de Barcelos manchados de sal.


18 setembro, 2009

whitman

Entardecer. Aleixo habita o selim de uma bicicleta-tangerina a inclinar-se de velhice sobre as pedras iguais do Largo Marquês de Pombal, despercebido entre estalidos de chinelos e conversas sem chama de banhistas tardios. O Poeta Destemido, proclamam sem quebranto as costas de Aleixo, uma secura de cortiça nos antebraços e o pequeníssimo zimbório negro da bóina a apontar o Norte. Um aceno curto. Num sopro, larga a pedalar epopeias que se perdem na brisa de Setembro como perfeitas bolas de sabão.


17 setembro, 2009

vasco da gama

Este Setembro é uma gaivota longínqua a franquear as chaminés de Sines. Anuncia-se tímido por entre o cordame de um veleiro esquecido no torpor dos molhes. Ainda tenta mostrar-se rijo, a imitar queixos de pescadores no cais de uma taberna. Mas desfaz-se daí a nada. Tomba à sombra das muralhas. Quando torna a erguer a cabeça é já um doente renal em doce declínio num catre de alcatrão e lagoas desordenadas de empedrado e areia suja. Rua João de Deus. Largo do Castelo. Um homem de olhos transparentes e camisa puída, o mesmo que dispôs automóveis como uma estrela exânime na sua jornada sideral, uma gratidão resignada na mão estendida, sonoros borborigmos de desespero ao contemplar o latão de uma moeda de vinte cêntimos a fulgir como o bricabraque de plástico numa loja de chineses. Agora despede-se do terreiro. Sozinho, leva nas retinas um lume de heroína, uma vaga memória de pés descalços na areia molhada, do terno hálito da mãe após um beijo na testa e do cheiro a mar no pescoço do pai, a cabecear de sono puro no colo quente. Isso e o prenúncio do Outono.
- Só temos isto para lhe dar - e a moeda pinga para a palma escalavrada como uma gota translúcida de placebo.
- Muito Obrigado. Não faz mal. Muito obrigado. Muito obrigado.

16 setembro, 2009

paz

Porto Covo escreve-se a branco e a azul na linha contígua a praias e pequenas enseadas de calmaria a que alguém chamou Rua do Mar. Há azul nas molduras do casario chão. O mesmo azul do Atlântico que se faz glauco antes de estender toalhas de espuma pelos areais. Há azul no céu. Um azul de ozono sobre uma baía onde não se adivinha a escuna de pavilhão negro. Barcos de pescadores como bagos de arroz numa indolência de porto seguro. Do glauco ao azul.

11 setembro, 2009

caleidoscópio

Godofredo preencheu o peito de ar, recitou o acto de contrição, persignou-se em piedosa genuflexão e agitou furiosamente o estilete, esventrando ali mesmo o pequeno bico de lacre de sua avó paterna num alvoroço de penas, alpista e moela.

Arsénio teria dado um bom limpa-chaminés, mas foi Augusto quem sobreviveu à explosão da bilha de gás.

Bacelar é um indivíduo.

Augusto desposou a filha do vizinho do terceiro direito, com quem concebeu dois faunos e um minotauro.

Antonino é o proprietário da confeitaria A Salmonela.

De maneira que quando chegou à idade adulta principiou a urinar em alguidares e a vociferar para as fotografias das tias-avós sobre a cómoda. Até ao dia em que conheceu Penélope, um travesti de Alfragide. Agora chama-se Soraia.

18 agosto, 2009

rés-do-chão

Acordei espesso como o manto de cristais de gelo sobre o torreão do Palácio da Pena. A colcha de lavores celestes que está sempre lá mesmo quando não está. Há um velho que me fita do espelho, uma ironia de desembargador jubilado nas sobrancelhas, um pequeníssimo conclave de baba nocturna a um canto da boca, que liberta miasmas de alho e queijo, de inércia e morte difusa, de abandono e capitulação, não dispare, rogo-lhe que não dispare, não me enforque, isso é que não pode ser porque vesti estas calças lavadas, telefone à minha mãe e diga-lhe que me faça um prato de arroz doce. Ei-lo. O homem prenhe de princípios que caminha com olhos meridionais, uma teimosia de pombo urbano a extorquir restos de papo-seco aos interstícios dos paralelos, a espinha vergada ao descalabro do ventre, o couro a escalavrar-se de ano para ano, parabéns a você nesta data querida muitas felicidades muitos anos de vida, ide todos para os tomates mais essa lírica de contentamento colhido em vasos de marquise, amassado em alguidares de plástico e servido aos domingos em travessas de borossilicato. Um bilhete para a primeira fila do supremo enfarte no tlim do microondas. Tlim. Sim? É o colesterol. Bom dia.


16 agosto, 2009

parce que c'est tellement beau tout cela

Gosto da forma como a curva da tua anca se insinua quando acordas, a prometer volúpia. Gosto de sentir o teu cabelo entre os dedos, a metade do teu rosto a procurar refúgio na minha mão. Gosto de tomar o teu ombro a meio de uma álea de plátanos em São Pedro de Sintra, a luz a chegar até nós da desordem das folhas, oblíqua e hesitante. Gosto de te sobressaltar a nuca com um beijo, a alvura da tua pele de gueixa a eriçar-se de ternura. De amor. Gosto de ouvir o meu nome na tua voz.


lípido

O insofismável aborrecimento de uma gota de suor a escorregar pela curva da carótida com uma languidez de azeite, enquanto a prodigiosa dorna e a respectiva cicatriz de um cordão umbilical tombam para o suão de Marrocos, sobre o cós das calças. Pêlos muito pretos num desalinho que o banho adestra e a aspereza da toalha desarruma, a toalha esquecida sobre a colcha. Como a papada de uma ave palmípede, isso, suponha-se uma ave a debater-se com a agonia de um peixe entre as tenazes do bico, no rabo um estertor de enforcado e o fulgor do Sol de Lisboa, tão perto e tão distante, substitua-se o peixe por uma fatia de bolo de chocolate a esbarrondar-se de encontro à mandíbula e aí o temos, um perfeito paquiderme de Aníbal, que ternura de refegos, a trepar os Alpes, ou a travar à chegada a Alfragide, o Estádio da Luz a crescer como um cesto de vime pintado de vermelho e um quadrado que se acende, oitenta!, ou a resfolegar na derradeira volta do laço no sapato, ou a suster no leito o ímpeto do quadril porque a aorta ameaça descoser-se e o miocárdio esgarçar-se. A geometria imperfeita de uma maçã reineta, ainda que dos canteiros das orelhas, que engraçado, desponte uma lanugem de pêssego. No prato. No espelho. De pé. Deitado como uma bacante a multiplicar canais de televisão, restos de bolo em redor dos mamilos, a sordície em que me acho a fazer lembrar uma viela na Brandoa, a fazer lembrar um saco de plástico que pende de um pinheiro à beira do IC2, se imaginar com muita força consigo ver um camionista de Frielas, uma chapa de matrícula a proclamar TOZÉ num extremo da carlinga, na escotilha lateral uma mamalhuda de indicador entre os lábios. Debruçada sobre o banco corrido, uma prostituta tisnada a ranger de piorreia principia a ordenha dos testículos. Uma segunda gota escorrega agora pelos nódulos da espinha. Aloja-se quente entre as nádegas. Um peido indolente. É o resplendor do Verão que se anuncia.

07 julho, 2009

lumen propheticum (dois)

Abordou o linóleo em passo pausado, embora firme. Um compasso de procissão nos silvos das solas de borracha. Inalou o bafio. Lentamente, libertou as espaldas do peso da mochila preta. Como as calças. Pretas. Como o boné. Preto. Como o sistema nervoso central. Descerrou com requinte o fecho. Tornou a inalar o bafio - cheirava a retrosarias e cobardes. Fez naufragar a mão nas entranhas da mochila. Devagar, fez surdir a Uzi entre as tenazes da mão direita.


03 julho, 2009

obituário

Por uma vez sem exemplo estou em sintonia com Luís Delgado. Sem a absurda mímica de Manuel Pinho, José Sócrates poderia ter ido ao ponto de ganhar o último debate do Estado da Nação antes das legislativas. Pinho já devia saber que a sua inclinação para o disparate só podia ser agravada por uma palermice tão militante como a de Bernardino Soares. Por outro lado, do dia em que o ministro da mão-de-obra barata, do calçado transalpino e das noites em branco capitulou sobeja um dado: a demissão fez por ele o que nenhum almofadinha do exército socialista de assessores e costureiras conseguiu fazer em quatro anos, ou seja, pôs insuspeitos algozes como Pacheco Pereira ou Lobo Xavier a isentar os chavelhos apontados à bazófia da bancada comunista, descrevendo o ministro demissionário como um dedicado Quixote que nunca percebeu que a política é um soez baile de máscaras.


02 julho, 2009

asno

A tua pomposa estultícia chega a ser comovente, Joseph: “E como há pouca crítica, pouca controvérsia, demasiados silêncios, não se separam as águas”.

“Não se separam as águas”, Joseph? Uma de três possibilidades: andas perdido, Joseph, entre a tua tão impressionante como aparentemente inútil biblioteca; és calculista como as demais hienas; és portador de um quebradiço tegumento intelectual.

Que farias, Joseph, se alguém denunciasse que tudo não passa de tratar dos teus, que os teus são tão lestos na artesania da insídia como aqueles que queres defenestrar? Porque uns e outros, Joseph, despiram em boa altura uma pele que os não levaria a lado algum. Mastigam os mesmos bifes. Roçam as nádegas nos mesmos colóquios. Houve quem arquejasse às chapadas de diligentes inspectores para que tu e os teus, Joseph, se pudessem pavonear de estúdio para estúdio, de jornal para jornal, de Bruxelas para Lisboa e de Lisboa para Londres. Mas jamais para onde importaria, Joseph.

26 junho, 2009

lumen propheticum

Ei-lo. Franqueia os currais de hastes ao alto. Afunda os cascos no cascalho e rasga chãs em acidentadas veredas. Para o Doutor da Lei não há sarça aguçada. Há o poder de uma boca cúpida sobre glandes prolíferas. Do poder. De tanto foder. O Cântico dos Cânticos. Um Oseias de almanaque a profetizar prostíbulos onde Iavé encontra Israel de vulva ao relento, a prostituir-se entre directores-gerais e secretários de Estado, amanuenses de repartição e outras sevandijas. A um extremo da cercadura anuncia-se Papa, faz-se Leão X e proclama voluntarista: “Desde os tempos imemoriais que se sabe quão proveitosa nos tem sido esta fábula de Jesus Cristo”. Cuidai. É Diamantino quem chega.


16 junho, 2009

afluente

Esta ausência de vento, este céu ubíquo feito do miolo de um pão de centeio, esta gota translúcida de suor a escorregar como uma áspide pelos nós da espinha, a sibilar parágrafos de Júlio Dinis num auto da fé sem chama, um estalar de aparador antigo, esta maresia de gasolina e trampa, este rumor contínuo de engrenagens. Este eu. Uma margem do Alva. O som da água sobre os seixos. Uma carcaça com queijo e marmelada. A minha avó Augusta a sorrir-me de uma cadeira de pano e alumínio, um chapéu de abas desmaiadas sobre os pequenos caracóis cinzentos e um carinho sem fim.

08 junho, 2009

o príncipe

Paulo Rangel é militante do PSD desde 6 de Maio de 2005. Figura do baronato? Não. Paulo Rangel foi o primeiro líder da bancada parlamentar social-democrata a cilindrar a prosápia tonitruante de José Sócrates no eucaliptal da maioria absoluta socialista. Acaso? Não. Paulo Rangel reivindicou a “primeira vitória do ciclo eleitoral”. Regressará a Lisboa para a terceira? Para perceber o alcance da superior inteligência política de Paulo Rangel, revisite-se Maquiavel: “Devemos, então, saber que há dois géneros de combate: um que se serve das leis, outro que se serve da força: o primeiro é próprio do homem, o segundo dos irracionais: mas porque o primeiro muitas vezes não basta, convém recorrer ao segundo. A um príncipe é necessário, portanto, saber deveras usar ou o animal ou o homem que estão dentro dele”.

11 maio, 2009

oh! quand donc pour moi brillera le soleil?

J oseph escreve-nos de Oxford. Os jornais de lá, diz-nos, não são comparáveis aos de cá. A fórmula poderia ser válida para os académicos. Se por acaso os houvesse. Cá.

05 maio, 2009

encore une fois

Pacheco Pereira, diz-nos o próprio, é um cronista do “espírito do tempo”. É também um tipo cego de raivas variegadas. Tão cego que não raras vezes lhe falta em rigor o que lhe sobeja em meningite. Percebo a necessidade atávica, que nenhum tafetá da São Caetano à Lapa ou canapé de colóquio podem minorar, de salivar encómios à Grande Líder e de cuspir farpas ao situacionismo, que o mesmo é dizer barbear os silvados e aplanar o macadame no caminho para as glórias do poder. Mas… “regos de qualidade”, Joseph?

26 abril, 2009

ideias de Abril (pináculo)

Há dez anos, Mário Soares viu gorado o desígnio de ocupar a Presidência do Parlamento Europeu. Perdeu o lugar para Nicole Fontaine. “Essa senhora daria uma excelente dona de casa”, reagiu o pai da democracia.


ideias de Abril (quatro)

José Pacheco Pereira lê obras em estrangeiro, publica fotografias de bancos de jardim, é incapaz de acertar a barba com simetria e dispõe do oleoso falsete de pároco de quem não passa sem um bitoque.


ideias de Abril (três)

Disse: “Tenho dúvidas de que a Coreia do Norte não seja uma democracia”. “Em Cuba há uma intensa participação da população na vida política e esse povo tem tido uma luta heróica contra os desígnios norte-americanos que o fazem enfrentar um embargo de várias décadas, por vezes criminoso”, aduziu. “Julgo que não há presos políticos em Cuba”, acrescentou. “Aqui há uns tempos vi um líder da oposição dar uma entrevista, no seu pátio em Havana, a uma cadeia de televisão internacional, dizendo que não havia liberdade de expressão. O exemplo fala por si”, pincelou.


ideias de Abril (dois)

Sosseguemos. Se o país soçobrar de vez, haverá João Rodrigo Pinho de Almeida.


ideias de Abril (um)

O sorriso de Vital Moreira é prodigioso. Sozinho, encerra trinta e cinco anos de pedantismo político, cupidez de poder, corrupção das almas e inépcia democrática.


25 março, 2009

turno da manhã


Amanheço a gotejar solidão. Sai-me pelos cantos dos olhos como sardaniscas a despontarem de fendas num muro de quintal. Em seguida ergo-me com um peso de botija, lânguido, rastejante, os calcanhares a sulcarem ninhos de pêlos púbicos e filamentos de cabelo pardo dispersos pelo mosaico. Do espelho para cá espreita-me um rosto anémico que aparenta ser um funcionário do Ministerium für Staatssicherheit, adivinho comentários em surdina sobre a heresia de escorar Solzhenitsyn nas espaldas de Lénine com Mao de atalaia. Sou eu, porém. Acorda, cabrão.

23 março, 2009

gourmet

Mark Knopfler. Telegraph Road. Ainda acredito na mestria sem a lixívia das mesas de mistura. Quando tudo o mais ruir pela base, haverá Knopfler.


19 março, 2009

konnichiwa

Uma lente oblíqua, no extremo de uma haste em filigrana, desliza gloriosa pelo algeroz do nariz. Retalhos de polegares no vidro da lente, a sobrepujar a íris verde de um olho de roedor. Um indicador compõe uma e outra vez, talvez fosse melhor escrever sempre, talvez fosse melhor apontar ao balcão da pastelaria Estrela e mastigar o chocolate herege na cobertura de um mil-folhas, mas escrevia há instantes que um indicador compõe uma e outra vez a lente e com ela a haste como lava incandescente septo nasal abaixo, de encontro à falda de uma narina húmida e carmesim, ao que consta por causa de um suão marroquino que sai em gorgolejo de uma grelha de ar condicionado.


- É do ar condicionado, sabem? – e ambas as narinas transpiram seiva translúcida, ambas as narinas se dilatam rubras como cachos de cerejas japonesas, não se dá o caso de as cerejas japonesas serem mais carnudas do que, por exemplo, as cerejas de Trás-os-Montes, todavia sucede que as cerejas que agora me ocorrem ressumam de árvores que choram delicadas no templo de Tenryu-ji, cerejeiras que a gueixa que tenho o hábito de trazer aninhada na hipófise me diz chamarem-se shidare-zakura. Não aqui, não este gabinete com esta balança. Uma pensão em Osaka. Uma pensão com águas quentes e frias em Osaka. Uma pensão com águas quentes e frias e um quimono de seda num cabide em Osaka. Uma pensão com águas quentes e frias, um quimono de seda num cabide e um mil-folhas sobre a mesa de cabeceira em Osaka.

27 fevereiro, 2009

boletim tauromáquico

O diligente funcionário do aparelho sentou-se à secretária e tamborilou sobre o tampo com três falangetas e um punho vincado. Diligente, o camarada escoicinhou uma e duas vezes no linóleo. Encontrou tempo para cuspir, diligente, perdigotos de inanidade no sentido dos cristais líquidos. Para depois percorrer a diligente Acção Socialista. Para depois vomitar judiciosas perorações sobre confissões e escolhas. Diligente.

O funcionário é causídico. E diligente. Escriba. Da sintaxe furiosa aos lábios frementes de ódio perante as maledicências. Quem ousa motejar, esclarecer ou questionar, alvitra diligente o funcionário, devia acabar de escroto pregado a uma tábua de pinho nas caves do partido.

O camarada escreveu e reproduziu os diligentes comunicados. No recato de uma casa de banho, bifou a carteira profissional ao bolso da camisa e com os cantos do documento limpou as nádegas de toda a merda. Havemos de fodê-los a todos bem fodidos, rugiu diligente.


03 fevereiro, 2009

medo (prólogo)

A grelha do carro é o bordão de Moisés a rasgar um mar de subúrbio. Num promontório do Cacém, à direita, agoniza um farol de luz fátua entre uma marquise e um postigo de casa de banho. Navios mercantes, arrastões, bacalhoeiros, batéis de barqueiros tristes e couraçados com gasóleo ou grandes tambores de betão no lugar de tombadilhos. Sobre a foz de uma avenida a ranger de cárie, um murmúrio de morte demorada, um manto mais negro do que a noite.

07 janeiro, 2009

m de minimalismo

Isaac detectou pela manhã uma borbulha no extremo do queixo, que depressa principiou a espremer entre os indicadores.

Cerca das nove horas os Bombeiros Voluntários de Queluz foram chamados a remover os restos de Isaac que uma sonora detonação aspergiu pela cerâmica do bidé, do lavatório e dos ladrilhos. Na saboneteira repousava intacto e trocista um pequeno bolbo de pus.

04 janeiro, 2009

seis, sete e oito (três)

Degrau. Um manto de lágrimas de pinheiro sobre laje e gravilha, choupos e ciprestes nas margens do caminho. Degrau. Um penedo a transpirar musgo, a laje despede-se das lágrimas dos pinheiros e as colinas estendem-se em vagas de frio na direcção da fronteira, na tela áurea do Sol. Degrau. Cadeirinha de Nossa Senhora, cadeirinha do meu bem; onde se sentou Nossa Senhora sento-me eu também.
- A tua pele de leite confunde-se com as paredes caiadas da capela e torrões de quartzo entre os veios de um trono de rocha – proclamo de lábios cerrados à guarda de um crucifixo sujo talhado em pedra de lioz. Imagino um messias de boina de fazenda, camisola de lã e botas com solas de pneu a suster o madeiro no ombro rangente, rios de peregrinos serra abaixo, enfermos de chagas purulentas e possessões de demónios ibéricos, as nascentes distantes, um fiapo de água cristalina a brotar de uma caleira na Travessa do Forno, outro de uma pálpebra num rosto de ferro indizível a encimar as tachas e as dobradiças de uma porta no cais da Rua do Passo Quedo, a esquadria imperfeita da muralha e um gato estrábico e dócil por companhia.


Degrau. Quase no cume. Erguemos as mãos e tocamos o céu gelado num êxtase de ascetas. Beijamo-nos. Os teus lábios sabem-me a calda de ameixa, o recorte do teu rosto confunde-se com os cumes enquanto levito a emanar halos de beato dos poros da nuca. Degrau. Eis-nos. Três velas sobre um prato de barro a iluminar o altar da nossa comunhão, no topo do conjunto uma escotilha oval e a ermida reproduzida em golpes toscos de espátula, um monte, uma igrejinha de cerâmica, um céu franqueado e Cristo a tombar morto no colo da mãe, ambos ingénuos e desiguais. Feridas abertas no peito, numa curva da anca magra, os joelhos esfolados, os pés sangrentos. E a Senhora da Penha contempla-nos numa placidez de bordadeira, lágrimas de verniz que escorregam pelas bochechas frígidas, pelas vestes negras, pelo pano de linho sobre a pélvis do mártir, por flores de bronze estampadas sobre o relevo das pernas, pela tinta de água do altar, pela tijoleira, pelas grades, pela sombra trémula de um enlace de amantes à luz de velas proibidas.

01 janeiro, 2009

sinfonia de gelatina com pêssegos

Os olhos viajam do azul para o cinzento com uma doçura de nuvem a insinuar-se num céu de subúrbio, a sobrepujar um vulcão de ladrilhos num carrocel de automóveis, da cor para a textura com a precisão das obras de arte, de um êxtase de menina diante de uma caixa de chocolates para a melancolia de um vazio que não se pode preencher, de um halo de bondade sobrenatural para uma chamazinha de vela a acender tornozelos, sandálias e bordões de santinhos em pagelas, de uma altivez de sala hipostila para uma singeleza de retratos, bordados e caixas de plástico com carne assada e fatias de bolo de ananás, de um sorriso que nos lava a tibieza e as ausências para um esgar de justiça que perdoa sem absolver, de um abraço que cheira a amor para uma chama de saudade que arde numa mão inquieta sobre a mesa.
- Tenho tantas saudades de Angola – repete. E os olhos perdem-se em distâncias impossíveis, embondeiros e manadas de elefantes, o corpo franzino maior do que a vida a crescer em frescura e juventude, em paixão e calor, a regressar no dorso de um jipe a um rés-do-chão na Amadora que o amor transforma em palácio de cristal, para retomar a coreografia do punho e dos nós dos dedos na cadência dos sábios, três vezes para diante, três vezes a recuar, três vezes para diante, três vezes a recuar. – Deita aqui a cabeça, prometo que não te despenteio – e eu a pedir-lhe em silêncio que me despenteie, que me salve de abismos e da maldade dos outros com um carinho de avó, as pernas um leito de claras em castelo e o cabelo branco um baldaquino de seda do Oriente.