21 dezembro, 2005

economia doméstica

A Preciosa, caracóis fulvos e rosto luminar, borboleteava entre as hortaliças e as caixas de pêros a transpirar um capilé de fada das reentrâncias húmidas. Despia-nos com íris que chispavam lazuli e afrontamentos apaixonados, sordície nos dizeres do rés-do-chão direito, santo ofício do prédio; uma coquete redonda entre as paredes perfumadas do lugar; uma gola em bico numa camisola cor de ginja a desaguar num rego de perdição, a cindir os seios que ora nos designavam num apontar túrgido, inspire, ora nos desdenhavam num recolher ofendido, expire. A Preciosa nunca deixou de ser a ternura inocente de uma quadra de manjerico, mesmo quando das mãos lhe escorria o sangue das lebres esfoladas numa cúspide de ferro, ou quando dos lábios polpudos cuspia as piores contumélias, ou quando vergava os rins para mergulhar uma pá de plástico na saca do feijão. Dizia-nos bom dia e o sorriso era um pomar, um laranjal e uma pouca de terra no descanso da chuva.

20 dezembro, 2005

ginástica

Pelo morrer do sol nas sombras místicas do eucaliptal, onde medravam paredes cruas de tijolo e tábua e telhados de chapa e oleado, esmagava o nariz nas janelas do salão nobre dos bombeiros voluntários, inspirava a cera dos tacos num tédio de sapatilhas e calções brancos e deitava-me a estudar a espuma da rebentação de encontro ao promontório da rua, finisterra ornada de calçada e colunelos de cimento.
- Uma cambalhota. Ao menos uma cambalhota, que não custa nada.
Dali por diante abria-se um oceano de alcatrão e paralelos que os galeões da rodoviária transpunham por certa soma de maravedis. Através do nevoeiro do meu hálito, que pulsava modorrento no vidro, via também o cais e os barris de água doce, o cordame a pender dos mastros e a napa dos bancos no convés de um navio, seis rodas que ferviam e um bafio de gasóleo numa grelha de popa; na confusão de despedidas e benzeduras, os prantos das mães, os carrinhos de compras das avós, as pastas dos escriturários, os sacos de plástico, os gibões, as lancheiras com sinais de trânsito gravados nas tampas, os pacotes de leite escolar, um Gloster, um Messerschmitt e um Heinkel 111 a preto e branco em papelinhos de pastilhas, as lanças, os tambores, a carne salgada, um cortejo de penitentes, o Cristo num madeiro pequenino e miúdos tisnados e ranhosos de semanas a esvoaçarem de mão estendida aos embarcadiços num pão por Deus de quatro estações.
- Assim não vai lá, que disparate. Não tenha medo da cambalhota, que disparate, ter-se assim medo de uma cambalhota.
Acolá, pimenta e canela nas galerias dos prédios e os cartazes do cinema Lido na ilha de Ceilão. O povo das árvores, afeito a encher as cafeteiras e os alguidares na corrente barrenta do Jamor, pouco subia aos portalós; se o fazia, agitavam-se as permanentes e os pós de arroz a bordo, hipérboles de secador e rolos, porfiando o direito à tarifa de uma gente que cheirava a uma tal sujidade de refogado; que antes do vinte e cinco de abril não havia esta pouca-vergonha, que a filantropia tinha os seus limites, que nem três salazares chegavam para pôr ordem nisto, que eu não podia jogar à bola com os miúdos ciganos no ringue do Atlético, que eu não podia acertar com um deles a troca de um carrinho ford amarelo, a pintura a refulgir, por um dodge púrpura de rodas bambas e que a minha mão luziria da palmada, se a tanto chegássemos; onde é que já se viu dar brinquedos aos ciganos...
- O menino não quer fazer a cambalhota? Não faça, que tanto se me dá.
E nos espaldares do salão nobre viviam aranhiços que por vezes pingavam em fios de baba quase imperceptíveis. Media-lhes a aproximação, esquecia-me do rebuliço no cais e do apelo das especiarias e executava-os entre as falangetas, afinal tão éforo como as senhoras de sobrolho enojado nos bancos coçados do autocarro.
- Venha daí, mexa-se, corra, pule, faça a cambalhota, que o menino está que nem um odre.
E eu não tinha como explicar que, a meu ver, a vida era um palmier coberto no balcão da pastelaria Láurea; e dobrar-me assim daquela maneira era pouco menos que um labéu.

15 dezembro, 2005

instante

Tens nas mãos a pequenez de um roedor silvestre. Isso enternece. Olhamos-te as mãos, deitadas sobre bombazina escura, e esbarrondamo-nos. Nas arrelias as mãos desautorizam-te. Na ternura desenham-te. Depois os olhos. Âmbar e bibliotecas. Depois a delicada estreiteza dos lábios, na proporção das mãos, e o que deles sai.
- Cheira a frio – dizes, escrevendo livros inteiros enquanto atravessas a rua.

14 dezembro, 2005

une faiblesse d'esprit

hoje acordei no Cairo. Da janela, um sopro de ar abafadiço, um cheiro de sal e açúcar, de farfalha de tubos de escape e arrumos de curtume no bazar de Kahn-el-Kalili. À porta do prédio, o branco maculado de um polícia a camelo, a AK-47 ao ombro e um par de botas de tamanhos díspares. Às vezes acontece-me acordar no Cairo, e quando espreito o Monte da Lua sobre os telhados da praceta vejo as pirâmides no lugar da Pena, palavra que estão lá, e uma névoa de diesel a adejar à altura dos números das portas.

meia-noite e um quarto

«Estava sozinho num iole em mau estado. Dez léguas a jusante de Chantenay uma bordagem cede. Declara-se uma entrada de água, impossível repará-la! Sinto-me em apuros! O iole afunda-se a pique e mal disponho de tempo para alcançar um grande ilhéu de grandes tufos de canas cujos penachos o vento encurvava. (…) Comecei logo a imaginar-me a construir uma cabana feita de ramos, a fabricar uma linha de pesca com uma cana e anzóis com espinhos, a fazer fogo, como os selvagens, esfregando dois pedaços de madeira seca um contra o outro. (…) A cena durou apenas algumas horas porque, logo que desceu a maré, bastou-me atravessar, com água pelo tornozelo, aquilo a que chamei o continente, ou seja, a margem direita do Loire.»

Júlio Verne – Souvenirs d’enfance et de jeunesse

13 dezembro, 2005

comichão (epílogo)

Quando aporto no cais de desembarque de um parágrafo e dou pela falta das malas, extraio a folha ao caderno com uma lassidão de derrota e projecto os beiços num amuo de neto gordo. Esqueçamos isto de vez.

07 dezembro, 2005

ambivalências


Leio a entrevista de Jung Chang ao Diário de Notícias e rememoro dois textos.

O primeiro é um ensaio de Duo Duo, poeta pequinês que abandonou, em 1989, a China de Deng Xiaoping – uma caliginosa crisálida que caminhava no sentido da apostasia dos preceitos económicos de Mao enquanto massacrava os seus filhos na Praça Tiananmen; o segundo é uma transcrição mais ou menos retocada, mais ou menos fiel aos acontecimentos – entre outras tantas que acenderam o fervor revolucionário de muita da intelectualidade europeia de 60 e 70 -, de uma alocução de Mao Tsé-tung na abertura da Primeira Sessão Plenária da Conferência Política Consultiva do Povo Chinês, datada de 21 de Setembro de 1949.

Um e outro desdizem-se. Como em todos os exercícios de saúde intelectual deste tipo - que todos os comunistas, da ortodoxia à heterodoxia, com uma paragem para meditação na catalepsia, deveriam repetir várias vezes ao ano -, um e outro cindem o autismo nostálgico de uma mentira, talvez a maior da História, e a dor inelutável da inocência perdida. Ainda há quem se esforce por alombar com ambos numa coexistência impossível. Não sei se isso não me comove.

Do primeiro recorto um parágrafo.

«Tudo se passou pouco antes do início da Revolução Cultural. Na parede ao lado da minha cama estava pendurado um cartaz com uma citação de Mao Tsé-tung: "Durante a época de trabalho no campo, devem comer-se alimentos sólidos; nos períodos em que não há muito para fazer, devem comer-se alimentos sólidos e líquidos, em partes iguais, e reforçá-los com batata e batata-doce". Conhecia todas as palavras de cor, embora não conseguisse perceber o seu significado. Todos os dias, antes de adormecer e depois de acordar, observava atentamente o cartaz e voltava a lê-lo. Não conseguia compreender por que motivo o nosso líder nos havia de dizer o que tínhamos de comer. Hoje, acredito que se se transformasse aquela citação num quadro, qualquer um a compreenderia: nos vastos campos não há nada para colher, 20 milhões de pessoas morrem à fome, porque não têm nada para comer. É por isso… É por isso que não se podia exprimir por intermédio da linguagem pictórica, só por palavras.»

Do segundo recorto três linhas.

«Senhores delegados, estamos convictos de que o nosso trabalho ficará na história da humanidade, a demonstrar que o povo chinês, compreendendo um quarto de toda a humanidade, se pôs de pé.»

As nove centenas de páginas de Mao – A História Desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday, situam-se muito para lá da implosão ideológica, a jusante do conflito interior ou da persistência da negação, da capitulação amuada do idealismo de antanho ou do trabalho de mineração, diário e quase obsessivo, em busca do aproveitável. É uma desinfecção da História que coloca num único plano tenebroso o Mao das grutas de Yan’an e o Mao baboso jarreta que enfeitava o leito com jovens amantes. Não sei se isso não me comove.

Créditos: O Figueiredo

06 dezembro, 2005

comichão

Zango-me a escrever. Quero tomar esta vereda, tão azada, tão cheia de sentido, e não me desembaraço desta outra que me atormenta como uma mosca serôdia, uma prosápia que só me alegrará quando enegrecer e encolher no lume do sobro. Tomba-se a esferográfica e não se fala mais nisso.

05 dezembro, 2005

uma nota de vinte escudos numa caixa de sapatos


As noites dos meus domingos são isto - o cheiro de uma colecção de notas esquecida numa esquina da arrecadação. Daí a uma hora, cabeceio de sono com anotações bolorentas, creio que da minha esferográfica, e a fotocópia de uma crónica de Fernando-António Almeida nas mãos, meia dúzia de linhas antigas a sulcar um farrapo de papel quadriculado e mascarras várias em folhas que desenterrei na cova mais funda de uma gaveta; histórias do Santo Ofício e da sua piedosa missão, anoto no esforço da vigília. E então, entre o capitular das pálpebras e um sussurrante adágio de Dvorák, reza a fotocópia - acompanhada dos gatafunhos acenosos no farrapo de papel, creio que da minha esferográfica, não sei se me repito, não sei se sustenho as pálpebras - que, em 1546, Francisco Xavier andava inquietado com a higiene espiritual da Índia. Vai daí escreve a El-Rei D. João III: "A segunda necessidade que a Índia tem para serem bons cristãos os que nela vivem é que mande Vossa Alteza a Santa Inquisição. Porque há muitos que vivem a lei mosaica e seita mourisca sem nenhum temor de Deus e vergonha do mundo". Pelo "temor de Deus" e pela "vergonha do mundo", gloria in excelsis Deo, instalou-se o Santo Ofício em Goa no ano de 1560. E aqui ao lado uma nota de vinte escudos, tão surrada; Garcia de Horta, cristão-novo, um cartapácio na mão esquerda e um olhar pétreo. A irmã de Garcia, Catarina de Horta, espreito-a nas grilhetas da Inquisição em 1568, nesta confusão do sono e de Dvorák, agora allegro molto. Catarina a denunciar o irmão finado; que isto e aquilo, que fez e aconteceu, que Garcia disse - eu seja ceguinha!, imagino-a a gemer - que "Nossa Senhora era uma mulher como ela e que seu filho não era Deus". Depois, as carnes de Catarina a grelharem num Auto da Fé na lareira do sexto andar. E o esqueleto de Garcia de Horta, sábio no "curar de física", exumado à Sé de Goa por instrução do Santo Ofício, tíbias, rádios e cúbitos queimados no fogo do Senhor e soprados ao mar. Até amanhã.

02 dezembro, 2005

desconsolo

Para não perder muito tempo e para poupar a alma ao aperto da desilusão, aponto duas ideias sumárias num quadrado de papel: um tratado de sensaboria literária; um prolongado bocejo de sessenta e seis páginas de texto. Não importa quem, não importa o quê, por pudor e por franco respeito.

30 novembro, 2005

20h00


«Já vimos na altura própria que não pode haver informação jornalística completa se o informador actuar como um mero repetidor ou transmissor que permanece indefectivelmente na superfície das coisas, se ele for transformado num transmissor de mexericos que transmite tecnicamente bem o que dizem outros, sem se aperceber do que comunica e das consequências. Se, na prática, se comporta como um eunuco intelectual que permanece numa erudita ignorância, então "conhece" muitos dados mas não sabe nada e, mais ainda, não sabe que não sabe, ignora a sua própria ignorância. E que, quando enfrenta um tema controverso, recorre ao fácil expediente de praticar um confortável maniqueísmo que o dispensa do esforço para alcançar a verdade.»

Gabriel Galdón López – Desinformação e os Limites da Informação. Lisboa 2003, p. 165.

29 novembro, 2005

renda de bilros

Uma cedilha ditou-lhe a crueza de um vão de escada. Isso. Por aqui. Não há tempo para mais. Duas horas e treze minutos, o coalho do leite ao abandono numa caneca e o guache das ideias, tão colorido no ocaso, a fazer-se agora sépia, a mando do relógio. Entro na brenha e não se fala mais nisso.
- Escreva lá o postalinho, Soraia, e encoste-o aí ao cabaz – disse o senhor Duarte, que eu bem ouvi, a apontar a barbatana de um bacalhau, um pacotinho de pinhões e uma garrafa de Porto numa mortalha de celofane amarelo.
Uma pobreza de caixas de cartão, dizia eu, e pacotes de bolachas de água e sal murchas de humidade; passar as noites aconchegada nas manchas de mofo em cobertores de caridade por causa de um risco curvo, mal se percebia o que era, um cisco, um defeito na cartolina, onde é que já se viu; um corpo mofino, a Soraia, azul de giz nas pálpebras e o rego entre os seios gordos a servir de Gólgota a um Cristo de prata, tremendo ao sopro das correntes de ar num nicho de mármore e caliça, um vão de escada, por causa de um risco curvo, uma pestana de arganaz na base de uma letra, se tanto.
- Demoras muito?
Gotas de chuva que lavam a gordura de dedos de avó e narizes de miúdos no vidro da porta, é favor fechar, um prédio semeado entre eucaliptos, lama e a magreza de cães vagabundos num cerro de cimento e ferro do Pendão, e à noite, no intervalo da telenovela, a gloriosa vista de um presépio de barracas na varanda do quinto esquerdo. A noite assim fria no vão de escada e o vento a assobiar-lhe um Charles Mingus de invernia, touch my beloved’s thought while her world’s affluence crumbles at my feet; às vezes parece-lhe tão verdadeiro que experimenta a pior das saudades, a falta indizível do que nunca teve, e por isso o trombone de Quentin Jackson, um arrepio, morde-lhe os artelhos gelados na madrugada dos proscritos.
- Vou já.

As funçionárias desta pastelaria desejam-lhe um feliz Natal e um próspero ano novo. A cedilha, a puta da cedilha, quem é que a mandou ir para ali, eu que transpirei tanto a escrever próspero, preocupada, os grumos de rímel que me desfiguravam o rosto na aflição, a fazer lembrar o que sucedia entre os braseiros dos fornos, o senhor Duarte que se babava de sofreguidão para o meu pescoço, as mãos húmidas que me analisavam os refegos e as caixas de bolo rei esmagadas numa confusão de nádegas, um atraso na sangradura do ventre e a lividez na expressão do senhor Duarte; eu que reli tantas vezes, eu a ver que não conseguia escrever próspero, pe, rós, pe, ru, pe, rós, e sai-me a cedilha em funçionárias.

28 novembro, 2005

fim-de-semana em papel (dois)

Os meus dedos demoram-se, por estes dias, nas páginas de um livro que atravessou meio mundo, de Moscovo a Lisboa - Prosa Escolhida, de Puchkine. Sobre o objecto (Edições Raduga, 1988), direi que não resisti a aproximá-lo das narinas, para compreender a que cheirava a União Soviética. Inconclusivo. Sobre Alexander Sergueievitch, direi que as considerações mais laudatórias da sua sanha contra a podridão da autocracia, na Rússia do Século XIX, são as do próprio czar, reproduzidas no prefácio da edição. "Puchkine espalha versos subversivos, toda a juventude os sabe de cor. Deve ser exilado para a Sibéria" – eis a receita prescrita por Alexander I para o pequeno funcionário imperial. Sobre a chegada do exemplar às minhas mãos, direi que sei do valor de um amigo quando ele escolhe os livros que eu teria escolhido.

fim-de-semana em papel (um)


«A escrita é a descoberta de nós próprios. Eu não gosto de reler muito os meus livros, mas releio-os quando são reeditados e, nessa altura, descubro sempre coisas que na altura em que escrevi não tinha consciência de estar a escrever. Os livros escrevem-se muito de noite.»

«Quando estou a escrever um romance tomo nota do que sonhei muitas vezes. Quando estou a escrever um romance tenho sempre papel na mesa de cabeceira. Se acordo e tenho uma ideia, escrevo. Outras vezes, se realmente é qualquer coisa tão importante que me obriga a escrever uma página, para não estar a incomodar a minha mulher com a lâmpada acesa da mesa de cabeceira, vou lá para dentro e acendo um candeeiro, escrevo um bocado e depois volto a deitar-me.»

«A escrita e a leitura faziam-me uma falta enorme, mas o pior de tudo era não poder ver o mundo. Estive com os olhos vendados muito tempo e custou-me muito não ver o mundo, sou muito visual. Felizmente fiquei a ver, mas sou muito míope. Vou ao cinema e ao teatro, mas tenho que ficar nas três ou quatro primeiras filas. Bem, há pormenores que me escapam, antes eu tinha uma visão muito aguda. Por outro lado, tem vantagens: às vezes vejo as coisas mais bonitas do que elas são. Num rosto, não vejo as rugas…»

Urbano Tavares Rodrigues
(retalhos da entrevista a Paula Oliveira - DNa, 25 de Novembro)

25 novembro, 2005

altar



...Every
young drummer I know

wants to play like Dave Weckl.
(Chick Corea)...


Quando averba sessenta anos, o homem comum estende os lábios, extingue as velas de um bolo mais ou menos barroco e cai numa modorra nostálgica. Chick Corea, esse, reúne nove formações diferentes de executantes virtuosos – Michael Brecker, Avishai Cohen, Jeff Ballard, Bobby McFerrin, Roy Hanes, para citar um punhado deles -, leva-as ao Blue Note de duas em duas noites, ao longo de três semanas, e cria um prodígio: Rendezvous in New York (2003). Nesse álbum bipartido - que encontrei ao abandono entre a poalha de um escaparate de Jazz, numa pequena chafarica de subúrbio cuja localização geográfica não quero desvendar – Corea senta-se ao piano na companhia de Dave Weckl e John Patitucci (Akoustic Band); ouvir o trabalho das baquetas de Weckl nos solos de bateria em Bessie’s Blues e Autumn Leaves é uma experiência religiosa.


Americano de St. Louis, Missouri, Dave Weckl começou a dedicar-se à ciência da bateria aos oito anos, em 1968. Cresceu a coleccionar prémios da NAJE (National Association of Jazz Educators) e foi estudar música para a Universidade de Bridgeport, Connecticut. Andou pelos clubes de Nova Iorque, foi ungido por Steve Khan, Michael Brecker, Peter Erskine e acabou a tocar na digressão histórica de Paul Simon e Art Garfunkel, em 1983. Brecker apresentou-o a Chick Corea em 1985; trabalhariam juntos durante os sete anos seguintes, na Elektric Band e na Akoustic Band – nove registos e um Grammy.

Adenda: há uns anos, depois do namoro prolongado de uma certa montra - e de uma não menos prolongada contenção financeira -, trepei a Rua do Carmo, entrei na Custódio Cardoso Pereira, subi ao segundo andar e anunciei que estava ali para comprar um par de baquetas Vic Firth, com a assinatura de Dave Weckl. Guardo-as numa gaveta como relíquias.

24 novembro, 2005

Rheinübung



...Quem consegue
ver os dois aspectos de uma questão

é um homem que não vê absolutamente nada.
(Oscar Wilde)...


Chamo-me Júlio e sou um par de calças de fazenda - uma cor desmaiada a fazer lembrar a agonia - que me atormenta as virilhas com uma comichão teimosa e balança como os sinos do campanário da vila num empedrado acima, empedrado abaixo, ainda o sol não acabou de remover as ramelas nas agulhas dos pinheiros, e isto num extremo da mata que mais ninguém conhece. Sou um bom dia belfo numa trincheira de dentes rombos, um dedo encardido de resina e betume a aconchegar um aparelho cansado no cavername do ouvido, o tema de conversas de retrosaria, coitado, de teses de domésticas e de sentenças as mais avisadas. Sou uma vassoura de galhos, cingida de ráfia, a descrever a Dança dos Mirlitons nos interstícios dos canteiros do meu jardim, se me vejo protegido pelos arbustos que podo à tesourada em forma de cestinhos de verga, a salvo do estupor de quem passa; Tchaikovski entre as conchas e os seixos que trouxe em sacos de supermercado da Figueira da Foz, aprisionados, depois, no cimento dos muros, e as folhas mortas de um salgueiro. Vivenda Saudade.
- Bom dia – digo a ninguém, a geada nos puxadores das portas e nos bancos da praça. – Vai-se andando – devolvo ao vazio numa solidão contente, a eito.
À noite desapareço das ruas, poupo no café e nas cigarrilhas, na piedade dos olhares, coitado, nas solas das botas de atanado e nos remendos entre as pernas. Sou os restos de um papo-seco com queijo e uma garrafa de cerveja que não chego a esgotar na ponta de uma mesa. Sou uma confusão de formões e plainas, pincéis e latas, pregos e lascas. Chamo-me Günther, suponhamos, e o barracão do meu quintal é um estaleiro de Hamburgo, suponhamos, e de um amontoado de molas de roupa, rolhas de cortiça e fósforos nascem cruzadores, suponhamos, um deles com oito canhões de trezentos e oitenta e um, doze canhões de cento e cinquenta, dezasseis canhões de cento e cinco, suponhamos, e num recesso do Alva os penedos serão, qualquer dia, os fiordes de Bergen, suponhamos, o Bismarck e o Prinz Eugen rio abaixo de encontro ao fim.

23 novembro, 2005

fio de melancolia


«Nils ergueu-se e foi até junto de Akka. Beijou-a e acariciou-a. Depois foi ter com Iksi e Kaksi, Kolme e Nelja, Viisi e Kuusi, as patas mais velhas do bando, e abraçou-as igualmente. Em seguida, separou-se delas com passo rápido e firme e tomou o caminho de casa. Sabia que a tristeza, nas aves, não dura muito, e queria separar-se das suas amigas, enquanto elas sentiam a dor de o perder. Quando chegou ao alto da duna, voltou-se e envolveu num último olhar todos os grupos de aves que se preparavam para atravessar o oceano. Todos gritavam alto: só um bando de patos-bravos voava em silêncio, enquanto Nils pôde segui-lo com o olhar.»

Selma Lagerlöf – A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia

Nota: creio que a melhor medida da riqueza narrativa que encontro em Selma Lagerlöf é esta minha necessidade de protelar a última página, este arrastar da leitura, um só parágrafo esbagoado uma e outra vez, a perda de um norte que, assim nos ensinam desde as fraldas, deve guiar-nos no mundo "verdadeiro": a fronteira da "idade"; a raia da "maturidade"; o apartar do sonho e da lágrima fácil e transparente. Esta Suécia de Lagerlöf, fábula inocente na aparência, é um apelo ao que sobeja de bondade em cada um de nós.

Créditos: Post Scriptum

22 novembro, 2005

filipe (três)



...Os homens não seriam capazes de
viver juntos, se não tivessem confiança uns nos outros,

isto é, se não dissessem a verdade.
(S. Tomás de Aquino, Summa Theologica)...


P ela noite, de segunda a sexta-feira, depois da sopa de feijão verde e da metade de uma maçã - três vezes três, seis metades, três malápias pequeníssimas num pires de casquinha -, a minha mãe reclinava-se, pitonisa de Sete Rios, na chaise longue e apontava-nos uma agulha de tricotar que desenhava colérica a preia-mar de Santa Helena no nevoeiro de tabaco da sala de visitas.
- Todos, agora – instruía a minha mãe, a batuta de alumínio a voejar numa confusão de traça estropiada. – Salve o popolo d’eroi – cantava numa voz penitente de confessionário. – Son rinati e figli suoi – respondíamos, três vezes três, sem percebermos que se tratava da Giovinezza, e que por esse e outros motivos é que os vizinhos murmuravam fascistas! quando nos encontravam nas escadas do prédio e descobríamos anúncios envergonhados no Diário de Notícias; vimos por este meio declarar que nunca tivemos qualquer associação com a DGS, ou qualquer coisa assim que o meu irmão mais velho, tão frágil, decifrava, encharcado de escarlatina num quarto que cheirava a remédios, o indicador trémulo a sublinhar as letras miúdas no papel de jornal.
De forma que cresci a alombar com esta culpa de qualquer coisa que não cheguei a perceber, não sei se das migalhas dos ouriços da Ericeira nas hastes de um gamo de quadrícula na minha camisola de lã, se desta fealdade sem par na progénie, e daí, creio eu, a inocência eterna da minha pele, a cor de leite nas costas das mãos e os veios azuláceos, tão frágeis, no eixo da testa. Daí a tua impaciência para com os meus silêncios ensimesmados, as minhas surtidas repentinas à Langrenus e ao Mare Nubium, para onde levaram o meu irmão mais velho; pelo menos imagino-o assim, transportado noite dentro, cosmos fora, pelas Streptococcus pyogenes. Daí que num nascer de noite em Outubro tenha julgado ver a tua capelina a abordar um autocarro em Mem Martins, ao fundo de uma rua sem passeios, e tenha encontrado, em seguida, uma mala e um caixote cheios disto que eu sou desde miúdo à porta do armazém onde por acaso, tão-só por acaso, trabalho.
Sinto a tua falta.

21 novembro, 2005

filipe (dois)

As mesmas nuvens numa praceta de Paiões, Outubro, Novembro, Dezembro, Janeiro, Fevereiro, sem a pieira cava do mar nos intestinos das furnas, sem o verniz cor de sangue a estalar de maldade no dedo teso da minha mãe. Para ali sozinho numa viuvez de mentira, a carpir esta falta de ti, das costuras coçadas dos teus chinelos, do creme nívea dos regos da tua testa incomodada para os meus lábios.
- Boa noite – um estalo seco no interruptor e o exílio de um anel num pratinho de estanho. - Dorme bem - um rumor de lençóis e cobertores. - Amanhã falamos – as pálpebras empenadas que não fechavam.
Três assoalhadas, a viver com o papel desmaiado de um maço de revistas Flama, tão velhinhas, por companhia; um cheiro a mofo, a loja de antiguidades - antiques, velharias, restauros numa parede a esbarrondar-se de idade à beira do alcatrão no Pobral, um amontoado de mós e uma roulotte de pães com chouriço – quando lhes encosto os extremos às minhas narinas; se inspiro com muita força, palavra que pressinto a minha mãe para os lados da cozinha; e então a marquise é uma esplanada, faz de conta, a minha mãe numa mesa de café, faz de conta, a verter laranjada nos copos dos meus irmãos, faz de conta que ainda somos três vezes três.
- Os meus rapazes são uma estampa, não são? – e o empregado da pastelaria a despontar detrás do tanque de lavar roupa, a assentir num sorriso palerma. – É pena aquele ali, o terceiro dos seis, ter saído assim – lamenta-se a minha mãe a desaparecer de uma magreza doente num casaco de malha.
Deixo a febre doce dos lençóis, a solidão de flanela e camélias de plástico de um quarto de rés-do-chão – três assoalhadas, vai ver que lhe bate aqui o solzinho de manhã à noite, ó se bate - e levo as mãos em malga a um fio de água amarela, um travo de fénico na boca; procuro uma nesga iluminada por entre as grades da janela do meu quarto e saio atrasado a evitar a água das poças.
Consegues vê-la daí, a falta que me fazes? Levo-a comigo todas as manhãs.

filipe (um)

Salve o popolo d'eroi
Son rinati e figli suoi


Consegues vê-la daí, a falta que me fazes num percurso errático de solas pela humidade da areia? Não deves poder vê-la, estás de costas para a imundície no alumínio e no vidro das janelas, para o viço perpétuo de um pau-brasil de plástico, para a caliça e o salitre no muro da esplanada, para um casal de velhinhos cansado de existir, ela um manequim de gesso a aproximar um galão do esmalte dos lábios, o dedo ínfimo, uma inquietude de galho ao vento, a designar um comício de gaivotas entre pacotes depredados de batatas fritas na rebentação de Santa Helena, ele uma camisola tricotada à luz de uma telenovela, um multiplicar de borbotos, oito vezes doze?, nos cotovelos e no arco do diafragma, migalhas de queijada sobre o cós e a braguilha das calças.
Estás de costas para a vida, noventa e seis!, se não consegues ver a falta que me fazes apontada de raia a raia na areia em colinas, se não ouves o prenúncio de um uivo que penso libertar, prometo pela saúde dos meus irmãos, éramos três vezes três, à beira daquela rocha sozinha, pesadíssima, inamovível, garanto-te que nem o Atlântico zangado de Santa Cruz pode extirpá-la ao desenho da costa. Consegues vê-la daí, a saudade?
Por vezes pergunto-me se devo alombar com esta culpa de pai distante, de marido aluado, ou se a culpa é da inocência eterna da minha pele, da cor de leite e dos veios azuláceos no eixo da testa, se te apaixonarias, porventura, por um eu diferente, mais homem, as barbas espessas como as do Quental de Armindo Viseu, a contemplar, do alto de um verdete majestático, o ir e vir da preia-mar e as varizes das holandesas nas cadeiras do bar Mar Lindo.
A minha mãe tinha por hábito, lembrei-me agora, contemplar-nos aos seis enquanto mastigávamos as cornijas doces dos ouriços da Ericeira, não muito longe de onde nos encontramos, se conduzirmos com o mar por companhia quase constante.
- Os meus rapazes são uma estampa, à excepção daquele ali, enfezado, a mastigar de dentes e amígdalas ao sol – dizia ao empregado da pastelaria, apontando-me numa sobranceria de capataz, e no céu nem uma nesga iluminada por entre as mesmas nuvens para as quatro estações.

vanda

Tem certos dias em que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Como um desejo de eu viver sem me notar


A minha mãe legou-me uma gravura do Rossio antigo - senhoras de espartilho e sombrinha, homens de chapéu de coco e bigodes de merceeiro, que engraçado; o amarelo de uma velhice de sótão. Fê-lo dois dias e três quartos de hora antes de naufragar numa tosse funda, um eco de gruta húmida do quarto para o corredor, do corredor para a cozinha, da cozinha para os plásticos encardidos que forravam prateleiras de aglomerado na marquise e daí para os meus ouvidos, que nem tapados pelas mãos em conchas – recolhia-as aos domingos de mão dada com o meu pai, conchas e pedrinhas pequeninas e pálidas por entre a nafta da Cova do Vapor - podiam fugir ao sortilégio da morte gemebunda; lembro-me dos grumos de um sangue de breu que lhe besuntavam as pregas das bochechas com córregos preguiçosos, enquanto eu regava estrelícias e uma costela de Adão como se nada fosse, como se a minha mãe não tardasse no portãozinho do quintal que rangia se o empurrássemos devagar, talos de couve e o rabo tísico de um bacalhau a espreitar da alcofa, um tlec-tlec nervoso entre os calcanhares e os tamancos.
- Larga o rádio e põe-me a mesa, sua imprestável - e eu a assobiar o Buarque e o Vinicius.
Tlec-tlec, tlec-tlec.
De modo que a gravura é tudo o que dela sobeja. Paguei-lha como pude, com lágrimas, visto que por essa altura o meu Fernando andava aos caídos por uma tasca tolhida na estação dos comboios de Queluz, a vomitar o desemprego e uma sopa de vinho azedo para os lancis e para as tampas dos serviços municipalizados, um fato-macaco da Lisnave que não queria despir, a carregar a mesma dignidade da viúva que bebia cariocas de limão às sete e meia num cantinho sombrio da pastelaria Trinitá.
Não se lhe ouviu uma palavra de carinho, um sempre gostei de ti, mesmo quando os sulcos da minha mão permaneciam litografados na redondeza do teu rosto, apenas um aquilo acolá é para ti e o resto é para a paróquia. De forma que arrebanhei o que pude e despejei quatro sacos de plástico e uma caixa de cartão canelado à porta do centro de dia; a minha mãe esquartejada em blusas estampadas e camisolas de lã, xailes e panos de cozinha, colares de pechisbeque e dedais; a minha mãe espalhada pelos pescoços macerados das velhinhas, pelos contentores da praça, pelos caniços numa margem do Jamor.

jorge

A minha capa ondulante
feita de negro tecido,
não é capa de estudante
é mortalha de vencido.


Quatro dedos deitados do peitoril do lábio ao barranco de pele vincada na base do queixo, sobre uma estopa espessa e semeada sem método num vaticínio de safras preguiçosas - as pontas da tesoura desdobrável numa poda de feriado entre vapores de água quente e o Fado Hilário na onda média do transístor; três dedos em leque de sevilhana, ao alto, o do meio sobre um triângulo isósceles de cabeça para baixo e os restantes sobre um desenho de barba a carvão que desmaia de mês para mês como os teus lábios de encontro aos meus às terças-feiras depois das vinte e três e quarenta e cinco, velados pelo torso amputado de um padre Cruz em gesso, numa cama de ferro a queixar-se em gemidos de velhinha constipada para trás e para diante, aos sábados às dezoito e trinta e oito num breu de despensa ao abrigo das homilias da tua mãe, os anátemas de Moisés numa cacimba de saliva da boca para a agulha de barbela sobre a pétala de uma camélia de croché e a minha mão sôfrega a desarrumar bolachas de água e sal e pacotes de arroz carolino enquanto investigo os bojos do teu corpo. Assim, quatro dedos deitados e três ao alto, logro apurar a geometria de um bigode e de uma pêra que, dizem-me ao balcão do bar dos bombeiros voluntários, mitigam um par de favas de bolo-rei que despontou há um ror de anos da minha gengiva - andava eu pelos canteiros da escola a sepultar berlindes na esperança de que nascesse uma árvore e que dos ramos, perfumados de alecrim, pendessem os abafadores azul cobalto que me levariam ao prémio da tua saia soerguida numa bissectriz discreta da vedação.

gabriela

Aos domingos acordo com pena de existir; uma mão-cheia de água de lava-loiça a remir-me os cantos da boca e as persianas pesadas dos olhos, a remover magenta e saliva seca, a minha e a de quem me calha numa taluda de noites abafadiças, tabaco de arquipélago e vãos de escada que se desfazem em caliça e bolor. Numa igreja de cinescópio, a circunferência do corpo de Cristo em plano picado, o branco anémico de um profeta gemebundo numa cruz de pão sem sal, entre as unhas limadas de um padre de estola púrpura e sobrepeliz lavada - ainda a primeira luz não acendeu os enxames de varejeiras e os restos de obras nas traseiras do prédio e já lhes sinto o arrependimento nas camisas abotoadas à pressa, nos passos culpados sobre os tacos do soalho, nos polegares discretos e aliviados a afastarem o trinco da porta sem um até logo, um obrigado, uma carícia doce do indicador e do anelar na voluta da minha orelha, compondo uma madeixa desbotada, sem um número de telefone apontado na bissectriz de um guardanapo de papel, como nos filmes.
- Porque me abandonaste? - pergunto-lhes num sussurro sozinho.
Aos domingos, quando a meia de leite e os grumos de coco sobre o pão de deus distam dezenas de estocadas de sandálias e joanetes da minha porta ao extremo da praceta, há uma claridade noviça e sebes estioladas que desenham frontispícios mouriscos nos contentores de lixo e nas tampas de esgoto, e isso é bonito; há a campa de um eu num canteiro esquecido, mais ou menos ao lado de um Alhambra tisnado de sombras.

Gérmen


«Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco em que toda a gente vestiu roupas domingueiras e arranjou uma cara de convalescente para celebrar o fim da chuva, mas depressa se habituaram a interpretar as pausas como prenúncios de recrudescimento.»

Gabriel García Márquez – Cem Anos de Solidão