20 dezembro, 2005

ginástica

Pelo morrer do sol nas sombras místicas do eucaliptal, onde medravam paredes cruas de tijolo e tábua e telhados de chapa e oleado, esmagava o nariz nas janelas do salão nobre dos bombeiros voluntários, inspirava a cera dos tacos num tédio de sapatilhas e calções brancos e deitava-me a estudar a espuma da rebentação de encontro ao promontório da rua, finisterra ornada de calçada e colunelos de cimento.
- Uma cambalhota. Ao menos uma cambalhota, que não custa nada.
Dali por diante abria-se um oceano de alcatrão e paralelos que os galeões da rodoviária transpunham por certa soma de maravedis. Através do nevoeiro do meu hálito, que pulsava modorrento no vidro, via também o cais e os barris de água doce, o cordame a pender dos mastros e a napa dos bancos no convés de um navio, seis rodas que ferviam e um bafio de gasóleo numa grelha de popa; na confusão de despedidas e benzeduras, os prantos das mães, os carrinhos de compras das avós, as pastas dos escriturários, os sacos de plástico, os gibões, as lancheiras com sinais de trânsito gravados nas tampas, os pacotes de leite escolar, um Gloster, um Messerschmitt e um Heinkel 111 a preto e branco em papelinhos de pastilhas, as lanças, os tambores, a carne salgada, um cortejo de penitentes, o Cristo num madeiro pequenino e miúdos tisnados e ranhosos de semanas a esvoaçarem de mão estendida aos embarcadiços num pão por Deus de quatro estações.
- Assim não vai lá, que disparate. Não tenha medo da cambalhota, que disparate, ter-se assim medo de uma cambalhota.
Acolá, pimenta e canela nas galerias dos prédios e os cartazes do cinema Lido na ilha de Ceilão. O povo das árvores, afeito a encher as cafeteiras e os alguidares na corrente barrenta do Jamor, pouco subia aos portalós; se o fazia, agitavam-se as permanentes e os pós de arroz a bordo, hipérboles de secador e rolos, porfiando o direito à tarifa de uma gente que cheirava a uma tal sujidade de refogado; que antes do vinte e cinco de abril não havia esta pouca-vergonha, que a filantropia tinha os seus limites, que nem três salazares chegavam para pôr ordem nisto, que eu não podia jogar à bola com os miúdos ciganos no ringue do Atlético, que eu não podia acertar com um deles a troca de um carrinho ford amarelo, a pintura a refulgir, por um dodge púrpura de rodas bambas e que a minha mão luziria da palmada, se a tanto chegássemos; onde é que já se viu dar brinquedos aos ciganos...
- O menino não quer fazer a cambalhota? Não faça, que tanto se me dá.
E nos espaldares do salão nobre viviam aranhiços que por vezes pingavam em fios de baba quase imperceptíveis. Media-lhes a aproximação, esquecia-me do rebuliço no cais e do apelo das especiarias e executava-os entre as falangetas, afinal tão éforo como as senhoras de sobrolho enojado nos bancos coçados do autocarro.
- Venha daí, mexa-se, corra, pule, faça a cambalhota, que o menino está que nem um odre.
E eu não tinha como explicar que, a meu ver, a vida era um palmier coberto no balcão da pastelaria Láurea; e dobrar-me assim daquela maneira era pouco menos que um labéu.

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