30 dezembro, 2008

seis, sete e oito (dois)

Cubro uma camisola de lã e uma saia de fazenda com um bibe desmaiado, um vermelho moribundo e orlado a branco, nódoas transpiradas para a costura de mangas furtivas e no pulso inteiriço um relógio a oxidar horas entre paredes quietas. Dos lóbulos das minhas orelhas pendem lagrimazitas de ouro, deixou-mas a minha avó, coitadita, que também moldava presépios, santinhos de face tumefacta, casinhas térreas com telhados imperfeitos, andorinhas e milhafres, poedeiras e cestinhos de ovos. Um dia, enquanto esperava a carícia da morte numa cama de ferro, com uma Senhora da Penha em gesso a velar-lhe os miasmas sobre um naperon na mesa-de-cabeceira, pediu que lhe trouxessem um pedaço de barro antes de tossir o resto de bofe que ainda a prendia a um quartito de pobres, febril de bafios e vozes pretéritas. Amassou um pénis de glande descoberta e a explodir de varizes e decretou que o entregássemos ao prior sem atalhar mais explicações, que ele compreenderia apesar dos soslaios indignados.
- Esse porco – rosnou. E a luz dos olhos apagou-se-lhe ali mesmo, o buço e os sulcos do queixo a descoserem-se num sorriso astuto.


À razão dos anos chorados pelos algerozes da vila, o meu cabelo fez-se barro, assim como os dedos se fizeram barro e o coração se fez barro. Agora que penso nisso concluo que toda eu me fiz barro, moldada a esta cadeira de carvalho, a esta mesa de aglomerado, aos brados de espanhóis, à indiferença de quem aqui entra, à indiferença de quem daqui sai, a este anjito de asas desiguais e crânio oval que me nasce das falanges sem dores de parto, senti-as certa vez, saiu-me um anjito assim como este. Depois cresceu e partiu para Cáceres, depois para Córdoba e por fim para Barcelona, de onde recebi o último postal com uma revoada do que me pareceram pombos na Praça da Catalunha, já lá vão, esperem, deixem-me ver, parece-me que oito anos. Por vezes ainda tento moldar o rosto do meu filho na cabeça gorda de um menino Jesus, mas já só me ocorre o cheiro a pureza que lhe sentia na cabecita quando acabava de o lavar numa tina de esmalte, as gargalhadas de filigrana que me redimiam de dias perdidos, de ausências, de esperas, de uma carestia da carne e do suor que só me abandonou quando se me secou o ventre numa taxidermia de esquentamentos.
- Vou para Espanha – anunciou-me numa manhã de Dezembro parecida com esta que vos trouxe a Marvão, o nevoeiro branco a juntar-se ao branco do casario que resvala colina abaixo, na mais bonita desordem que algum dia conheci, o som das botas sobre os seixos molhados da rua a desaparecer num arco da muralha, eu a desaparecer com ele para dar lugar a este torrão de barro numa salinha de museu. Mas obrigado por terem vindo. Obrigado por terem vindo.

29 dezembro, 2008

a de antónio

Tive pai. Palavra que tive pai. Era um par de mãos de cortiça húmida nos extremos de braços que segregavam sangue venoso. Sangue que se quedava coalhado, do vermelho para o castanho e deste para uma podridão azulácea. Era um fiapo de fígado macerado em açúcar, aguardente de mel e vinho novo. O fígado do meu pai chorava, salvo quando a cortiça das mãos me pintava equimoses nas mandíbulas e nas maçãs do rosto, roxas como brincos de princesa a medrar em latas de óleo e garrafões de lixívia que a minha mãe convertia em vasos. Então sorria. Uma vez o fígado do meu pai arriscou um soneto de restos azedos de canja e empadão, os joelhos da minha mãe esmagados de encontro ao linóleo enquanto um pano puído enxugava duas quadras e dois tercetos que consistiam em três moelas e o que me parecia ser uma pevide. O meu pai chamava-se Francisco. Era uma boina a resvalar de uma cabeça que pendia de absentismo a um canto da cozinha, junto ao lume da salamandra, um fiozinho de baba suja a gotejar entre roncos das esquinas dos lábios para a mão de cortiça que lhe sustinha o queixo escalavrado. Era um homenzinho de olhos vagos a imitar alambiques no dia da minha comunhão solene, o corpo insonso e pegadiço de Cristo a cair de espaldas nas minhas mãos em concha e o queixo desdenhoso do meu pai a designar-me dos derradeiros renques de bancos da capela.
- Que pena não ter perdido os tomates para uma mina ou uma bala perdida de um guerrilheiro na Guiné – pensava o meu pai, que era um par de mãos de cortiça húmida nos extremos de braços cobertos de sangue coalhado, pranto artístico da doença que o impedia de saciar os refegos da minha mãe entre lençóis de flanela. – Vira para cá o canjirão, tu – segredava o meu pai numa curva de orelha. – Nem que o untasses de resina – respondia a minha mãe num enfado de acólito na primeira eucaristia de domingo, uma parte de vinho, duas partes de água, uma parte de morte na vida de todos os dias. – Que pena não ter sido partido em dois por um morteiro soviético.
De forma que me acho agora melhor do que o meu pai, apesar de não me lembrar para que servem as ferramentas, de como se corta um caixilho, como se apura a esquadria, de uma noite de sono, como sorrir, como chorar, como amar, do dia em que nasci, mas sobretudo do dia em que morri.

19 dezembro, 2008

g de gratinado

Comove-me saber que envelhecerei sem quartel, embora venha cerzindo pregas e untando sulcos há um par de anos. Uma ocasião perguntei a um médico de boca oculta numa máscara azul celeste se não poderia debruar um sorriso imemorial nos meus lábios rarefeitos. Não. Agora pareço triste quando sorrio e contente quando choro. Bardamerda. Tenho anos disto e na verdade não carecia de qualquer apuro no tegumento para invadir os vossos cinescópios de cozinha ou cristais líquidos de salão e contar-vos que na Covilhã um cantoneiro, um funcionário dos correios e um professor primário vão ataviar-se de reis magos e contar histórias a crianças de olhar vago e reacções monossilábicas. Serve isto para dizer que me mordem as miudezas, sobretudo à noite, quando os meus acrílicos sobre tela parecem segredar-me das paredes que não tenho ninguém a quem os deixar.

09 dezembro, 2008

seis, sete e oito (um)

Por veredas de sobreiros, ciprestes e oliveiras construímos um caminho plácido. Há uma paz de musgo nas penedias. Ao longe um touro vago entre vacas vagas, quase glaucas se a bruma levita, fulvas se o sol faz prova de vida entre cachos de nuvens de carvão.

No prato repousam plumas de porco preto, adiante um par de botas alentejanas, lá fora um capote gasto, erosão de décadas em paralelos e lancis, uma muralha, um busto, um charco de leite azedo, não água, leite azedo, canteiros de hidrângeas a tremer de silêncio, humidade e frio. Nisa.

Ao entardecer adensa-se um nevoeiro que tomba de chaminés, calhas e beirais. E o vento empurra corpos quebrados, ombros em ruínas, para as portadas da igreja matriz, para luzes morrediças em postigos ou janelas em cruz, para um linguajar salgado e indolente, para uma miopia baça à mesa de um café, à mercê de vapores de chá verde e migalhas de biscoito e chocolate.

Lá fora a chuva. Cá dentro a calda de açúcar num terçar de íris apaixonadas. Castelo de Vide.


Praça Dom Pedro V. As pálpebras miasmáticas como a luz, os lábios a agonizar como os olhos numa ausência de ruminante.

- Temos prospectos, mas apenas em Francês ou Castelhano, temos restaurantes, estão nos prospectos, temos um percurso, está marcado a azul nos prospectos, não sei se sabe que temos prospectos, mas somente em Francês ou Castelhano, por vezes arrisco um sorriso, mas apenas com a tragédia de uma vizinha, somente com um regato de saliva no queixo de um aleijadinho, ou o nariz do meu Isidro a farejar-me a nuca à meia-noite de quinta-feira, sempre à meia-noite de quinta-feira, ai tesouro que trazes a dobrada escorregadia como o empedrado da Rua 8 de Infantaria. À volta? À volta há prospectos como estes, talvez em Mandarim, talvez abandone este balcão, talvez deixe esta morrinha e o vento polar, talvez pinte as unhas de sangue, o cabelo de cobre, talvez parta para Cáceres, talvez parta para Lisboa, no bolso um saco com farelos de bolacha para atirar aos pombos na Praça da Figueira, entre pretos, paquistaneses e turistas de sovacos negros.

Casa do Parque. Este meu caminhar é um esquife escalavrado a adernar numa margem do Tejo, o meu bigode um castelo de popa a esbarrondar-se de caruncho e podridão. Caminho oblíquo como a chuva que enverniza a Rua Direita do Castelo ou o Passo Quedo, os colunelos e o corrimão à distância de um passo e um passo à distância de um anel de Saturno, o degrau à distância de uma lágrima, da pálpebra para a laje, e uma lágrima à distância de um nome, Ana, uma confusão de aranhiços e casulos de bichos da seda entre as têmporas que apenas um nome, Ana, somente um nome, Ana, pode sossegar, um nome, Ana, precedido de uma ordem, olha, Ana, olha, Ana, olha, Ana, olha, Ana, olha, Ana, olha, Ana, olha, Ana.

- Foi uma trombose. Isto foi uma trombose – e deixo que olhares alheios se contraiam num prisma de comiseração, num triângulo isósceles de piedade benfazeja, num arrepio de reticências.

Judiaria, Rua Bartolomeu Alves da Santa, Avenida da Aramenha, quarto número cento e cinco. A tua anca é sinuosa como estas ruelas de casebres. Ao fundo uma capela, lá dentro um altar, bancos corridos e varizes em genuflexão, um êxtase de acto de contrição, uma comunhão de mãos sob um cobertor, uma alquimia de lábios sôfregos, a incomparável virtude de dedos suaves no rosto.

O teu cabelo é uma estrela de David numa placa de pedra de lioz.

- Aqui reino – dizes. - Aqui deito gigantes por terra com um rápido vibrar da minha funda. Olhai. Tombai de amor no mármore dos meus ombros, no leito do meu ventre, na cornucópia barroca da minha orelha, no ângulo impossível das minhas pálpebras felizes, na carne tenra que arrasta olhos gulosos e prende mãos famintas, nos meus pés de gueixa e no meu peito de vestal.

02 dezembro, 2008

c de crustáceo

Apelo a todos para que se recordem. Recorde-se, escrevo eu. Recorde-se que qualquer coisa e depois segue-se a sintaxe de uma redacção em papel desmaiado que roubamos ao fundo de uma arca de pinho, a um canto frio da arrecadação. Quando crescer quero ser bombeiro, accionar a sirene quando o telefone anuncia as cinzas de umbrais, mosaicos e discos de realejo e harmónica. Isso ou filho da puta, tanto se me dá. Mas voltemos atrás, escrevo eu. Voltemos atrás porque o caminho faz-se sempre à ré, o tampo da mesa à altura dos mamilos, os olhos ocultos num véu de cristais líquidos e a língua entre um canino e um molar num esforço de estropiado. Fodei-vos a todos. Estou aqui para tratar da minha vidinha, assim mesmo, vi-di-nha.

27 novembro, 2008

p de penedo

Tenho a sagacidade da toupeira. Movimento as peças no tabuleiro com a destreza do mestre. Sou militante. Tenho cartão. Sou o astro e o satélite, o breu e a claridade. Distribuo adjectivos obedientes e semeio predicados cirúrgicos. Supero-me. A minha cor é lei. Nas demais limpo as minhas nádegas. Se estão por nós, aplaudo. Se não estão, condeno. Conheço a verdade. Domino a mentira. De uma e de outra faço os meus dias.

13 novembro, 2008

c de catarina

Esvoaça por entre secretárias numa frescura de formiga alada, convoca-nos de peito seminu, castiga uma banana dos incisivos para os molares com a volúpia de uma ninfa, ondula o cabelo em vagas de trópicos com um menear lânguido da cabeça, leva o quadril de ocidente a oriente e de oriente a ocidente como uma bailarina do Nilo, enverga tafetás e traz cerejas no lugar dos lábios. Se lhe tocamos, desfaz-se como um palácio de cinzas.

18 outubro, 2008

muco

Percebemos que atingimos o grau meridional da influenza quando principiamos a alimentar reflexões atrabiliárias. Tais como: apetece-me urinar, mas custa-me erguer a carcaça do sofá. Que bom que era ter por perto uma garrafa de plástico vazia.

17 outubro, 2008

enfermo

Neste crepúsculo enfermiço e gemebundo, lembrei-me de António Lobo Antunes e do seu poema "Um homem com gripe". Escutai.



Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão-de-ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.

26 setembro, 2008

verrina

Luís Filipe Menezes enferma do voluntarismo de um cavaleiro da triste figura. Não tem culpa. Nasceu com essa matriz genética. Mudou opções cromáticas e linguagens no PSD. Ousou falar em Português corrente. Passar por cima dos potentados que construíram o partido mais vaidoso do edifício político português é um exercício de autofagia. Daí o epílogo do seu consulado.


Demarcou-se da olímpica doutrina do pachecopereirismo e dos doges. Defenestrou-se. Mas o pediatra que ainda vive em Luís Filipe Menezes vinga-se agora com supositórios. Os soldadinhos de botões de punho de Manuela Ferreira Leite, disse o soba de Gaia, formam “uma equipa de pessoas profissionalizadas no cocktail”. Ite, Missa est.

25 setembro, 2008

elegia

Inácio catapultava-se todas as madrugadas de um colchão prenhe de sordície para uma bacia de alumínio. Navalhava então o queixo com os olhos desmaiados de encontro a um fragmento de espelho aposto a uma ruína de ladrilho vidrado. Eram assim as madrugadas de Inácio, cantoneiro da Junta de Freguesia de Queluz e amante de bicos de lacre e canários. Inácio masturbava-se após o almoço num barracão com vassouras de galhos e caixotes de lixo. Imaginava os seus rins entre as tenazes que seriam as coxas de Anabela, amanuense na repartição de finanças e amante do vizinho do segundo esquerdo, que vendia bilhetes de lotaria à porta da pastelaria Quadriga. O pai e a mãe de Inácio conceberam-no na posição do missionário. Enquanto o pai de Inácio movia os quadris para cima e para baixo, a testa da mãe de Inácio enrugava-se de aborrecimento. Depois de ejacular, o pai de Inácio limpou a testa a um extremo do lençol e caiu varado por um enfarte do miocárdio. A mãe de Inácio completou as palavras cruzadas do jornal da véspera antes de telefonar para os bombeiros voluntários.

28 agosto, 2008

subúrbio

Lurdes retirou uma escumadeira da gaveta e deteve-se por alguns minutos no reflexo do galo de Barcelos no cabo de aço inoxidável.

Jorge comprou o jornal e leu-o demoradamente na estação de comboios do Cacém até encontrar o nome de um primo emigrado nas páginas do obituário.

Rodrigo barbeou as costas das mãos e os dedos antes de aplicar verniz vermelho nas unhas.

Anabela varreu os últimos metros do passeio, acendeu um cigarro e foi atropelada por um camião de congelados.

Manuel recolheu à cama pelas vinte e três e trinta e cinco.

Rosa recolheu à cama pelas quatro e vinte.

Francisco aprecia lingueirão, melancia e o odor do quintal depois da chuva.

Miguel deu entrada no serviço de urgências do hospital de Amadora e Sintra com uma chave de parafusos no canal auditivo.

As fotografias de Miguel e de Anabela estão nas páginas do obituário do jornal comprado por Jorge.

Rosa simulou uma gravidez de forma a conseguir um assento no comboio.

Jorge levantou-se e cedeu o lugar a Rosa. Ambos sorriram.

Rodrigo comunicou a Lurdes que tenciona ir viver com Francisco.

27 agosto, 2008

défice de atenção (três)

Ora uma moeda de dois cêntimos somada, suponhamos, a uma moeda de cinco cêntimos perfaz, vejamos, sete cêntimos, que por sua vez somados a uma moeda de dois euros, foda-se, perfazem dois euros e sete cêntimos, isto se na carteira não jazerem moedas de um cêntimo num abandono de verdete, puta que as pariu, o que tornará substancialmente mais complexa a aquisição de um iogurte e de uma sandes mista em pão de sementes. Moedas de um cêntimo, moedas de dois cêntimos, moedas de cinco cêntimos, moedas de dez cêntimos, moedas de vinte cêntimos, moedas de cinquenta cêntimos, moedas de um euro, moedas de dois euros.

26 agosto, 2008

detergente

A morte consiste em deixar de ir comprar pão ao extremo da rua pelas oito horas. Acordar é negligenciável, uma vez que dormir também o é. Desaparece a necessidade de cuidar da higiene. Madeira, cadáver, cetim e sobre o conjunto uma manta de veludo púrpura debruada a ouro. Pela manhã, persiste o aroma das azáleas depositadas de véspera numa jarra de mármore a um canto da campa. Morrer pode ser bom na medida em que a transpiração cessa. Por outro lado, sabe-se que unhas e cabelos podem continuar a crescer por tempo indeterminado, por vezes até à transferência de tíbias, rádios, cúbitos, vértebras, maxilares e falanges da terra para uma gaveta a que se justapõe uma fotografia a sépia e ovalada. Acaba-se a saliva, o cerúmen, o muco e o esperma. De um só golpe, finda-se o cuspo, o prurido no conduto auditivo externo, a irritação das mucosas, a masturbação, o coito e as nódoas desmaiadas a meio do lençol. De Inverno não se experimenta o frio. De Verão o calor não incomoda. É certo que não mais se pode comer mil-folhas na pastelaria Estrela entre menopausas, laca e lavanda. No entanto, termina o fenómeno da fome, pelo que termina a gula e, a jusante, a dificuldade em arquear o tórax para unir os atacadores. Acaba o cansaço. Descanso eterno. Ao principiar a noite, o sol oblíquo acende uma cruz de latão na lápide. Por perto um torrão húmido e gerânios de plástico. Uma coluna de formigas desce um outeiro de terra e naufraga em gravilha. Mas tudo isto importa pouco, pois tem lugar à superfície. À noite o vento assobia entre jazigos. Sem contudo incomodar.

19 agosto, 2008

défice de atenção (dois)

Acontece-me vogar para mares alterosos sem perceber por que razão mudei de rota. Por conseguinte, que se foda.

16 agosto, 2008

compulsão

Um pequeno charco de água suja em Peniche. Não o salitre nas paredes do forte, não uma gaivota sobre um pináculo esférico na Avenida do Mar, não a quadrícula na calçada, não uma muralha escalavrada, o viço de ervas daninhas nos interstícios das pedras, não estes três velhos a darem à costa num vagar de algas na maré baixa, atracados a uma mesa de esplanada, o primeiro uma camisola castanha, dois anéis e um chapéu de chuva azul de uma para outra artrose, os demais dois ganchos a governar fios grisalhos de cabelo em ruína e uma bóina cinzenta, casados, creio que casados, de certeza que casados há pelo menos tantos anos como as pregas no reboco do forte, não o caminhar tonto de um solitário do lancil para o alcatrão, não o ouro de brincos a pender em lágrimas nos flancos de um promontório no lugar de um queixo, um Cabo Carvoeiro de tegumento e penugem esquecida, não um casal de suecos, nos ombros chagas de sol, nos sovacos o odor de pombais abandonados, não um brinquedo de plástico nos dedos minúsculos de uma criança que se baba e ri, não um pregão de peixeira, escamas no sabugo de uma unha, não um par de óculos escuros a medir nádegas e peitos numa esquina da praça, não um pescador de ferro forjado de costas para o mar, de remo ao alto diante de caldeiradas e santolas, não o ordinário estalido de chinelos de encontro ao cais de embarque para a Berlenga, não eu. Um pequeno charco de água suja em Peniche. Penso no pequeno charco de água suja em Peniche e em tudo o que um pequeno charco de água suja em Peniche encerra e comanda.
- Veste uma camisa, Vítor, ceifa a barba que desponta das tuas mandíbulas, Vítor, que eu atavio-me de brocados e pérolas, Vítor, visto uma blusa vermelha sangue de boi e ponho a cara caiada numa alvura de gueixa, Vítor, tu um samurai de Peniche, Vítor, afianço-te que a Avenida do Mar será nossa, Vítor, que as lagostas farão vénias respeitosas no fundo do aquário da cervejaria, que os restos de chuva na calçada secarão à nossa passagem, Vítor, monarcas dos faróis e dos molhes. Que bem que dançaremos os dois, Vítor, rutilando no terreiro como um par do cinema. Amas-me, Vítor? Diz-me. Conversa comigo, Vítor. Diz-me que estou bonita. Elogia-me o verniz das unhas, Vítor. Mostra-me que ainda és homem, Vítor.
O forte, a gaivota, a calçada, a muralha, as pedras, os três velhos, o solitário, os brincos, um casal de suecos, a criança, a peixeira, os óculos escuros, a estátua, os calcanhares, eu e o olhar triste de Vítor. Não. Um pequeno charco de água suja em Peniche.

15 agosto, 2008

auto da fé

Juro-te, crítico relapso, que ao abrir as pernas, convidando-me solícita a afundar-me entre os filetes húmidos do amor lúbrico, libertou bafios de cave antiga e que no jarro sobre um naperon a um canto da mesa de cabeceira lacada pereceram desde logo dois cravos e uma túlipa. Quanto a mim, limitei-me a perder os sentidos, para de imediato ser devolvido à miséria da consciência por um par de incisivos em matizes de manteiga que me maceravam lenta e languidamente as cartilagens da orelha.
- Gostas assim, riqueza? – perguntava-me de lábios acoplados à curva do meu queixo.
Depois principiei a experimentar-lhe nas palmas das minhas mãos retesadas as cerdas das coxas e demais imprecisões da carne, de modo a tomar o peso e a forma a uma fealdade de bairro social, de alfaces, tomates e anéis desmaiados de cebola abandonados em alguidares azuis, de pequenas concreções de merda em gaiolas de periquitos, bicos de lacre e canários.
- Isso. Anda. Arremete como os elefantes de Aníbal.
Napoleão, contaram-me certo dia a partir de Umberto Eco numa mesa de café, mandava instruções do jaez higiénico a Josephine, quando em campanha. Pedia-lhe que resguardasse aromas, que se abstivesse de se lavar entre as virilhas nos derradeiros dias antes do retorno do soldado. Como o percebo, crítico impenitente, agora que me ocorre uma unha estaladiça de indicador a sulcar-me lenhos de sangue no lombo.
- Agora por detrás.
E as nádegas esbarrondam-se de encontro à minha pélvis num ir e regressar de báscula, um enormíssimo bacinete de sul a norte e de norte a sul à cadência de um malho de partir calçadas entre os calos e os cravos nas mãos de um romeno. Eis-nos, estimado crítico atreito à fatal deliquescência dos biltres, eu e uma puta furtada a um vão de escada na Praça da Figueira, os dois, amando-nos num quarto de pensão, uma cama de ferro, um mosaico canceroso, uma cómoda, um casaco de malha a morrer sobre uma camilha de tule e Jesus de dedo espetado e olhos suplicantes a perguntar pelo Pai numa imortalidade de papel lustroso.

14 agosto, 2008

défice de atenção

Custa-me admitir que sou impaciente, inconstante, insatisfeito, inábil, incapaz, inadequado, inadaptado, intransigente, intranquilo, intratável, irascível, insociável, imperfeito e incompleto. Por conseguinte, que se foda.

29 junho, 2008

areia branca

Gosto da tua pele de manhã. Da subtileza no teu quadril, de oriente a ocidente sob a palma da minha mão entontecida. Revejo-me no vagar do teu corpo de leite, solícito, a aguardar-me numa volúpia de leoa a espreitar gazelas por entre o mato. Vou ao topo das escarpas e precipito-me sem cuidar que a maré vaza desde cedo e que não há vento suão que me ampare a queda.
- Amo-te.


Além há um forte solitário, esmaecido na cor e na esquadria. Paimogo. Agora o vento sopra já frio, a tarde embalada em pendor oblíquo, como os canaviais na moldura da estrada. Somos. Assomos de ternura num arrepio de morrinha e salitre, o tecto do mundo a escurecer num negrume furioso. Eis-nos. Dois. Um, em suma. Deixamos tracejados na terra cor de sangue, rumamos a parte alguma, que importa o onde se podemos ir a todo lado, a Antananarivo, se quisermos, a Saigão, ao Cairo, onde há um cheiro de morte doce e uma cidade dos mortos habitada por vivos. Debaixo do sol de Assuão, à beira do lago Nasser, vemos um voo elíptico de íbis e provamos a doçura de um chá de menta, dos teus lábios para os meus.
- Eu também.
Gosto de teu cabelo neste areal. Da forma como oculta e desvenda o mármore do teu pescoço, à medida que o vento sopra serpentinas de gaivotas na direcção de um cais em Peniche. No porto de Peniche morrem sacos de plástico e ruínas de canas entre amarras de barcos e redes de pesca. Além um farol verde e branco a guiar-nos no regresso a casa, o mar por companheiro e o meu olhar a descansar no teu.

16 junho, 2008

horizonte

Uma comenda. Uma comenda que seja. Uma medalhinha a refulgir no peito, sobre o coração gasto. E depois esta existência trôpega a reconquistar a vertical, lenta mas seguramente. Os sulcos a espraiarem-se, para logo desaparecerem numa pele suave e sã. As varizes a retomarem os seus lugares no fundo de um oceano branco, onde até os peixes são pálidos e cegos, adentrando-se na carne em recobro até se esfumarem no cetim das minhas coxas renascidas. Lembro-me do cetim das minhas pernas, um mimo, e as minhas nádegas eram firmes cerros gémeos cindidos por um desfiladeiro negro. Havia até um vale frondoso para o qual pendiam cascatas de óleo de amêndoas doces e eflúvios de peixe fresco na lota. Abróteas, chernes, carapaus e marucas. Tudo misturado em aromas de desejo, uma fome de carne a latejar-me nas têmporas, na jugular, nos bicos das mamas melhores que pêra rocha, no mais profundo das minhas profundas intimidades.
- É com muito gosto, senhora dona Lurdes, que a Presidência da República lhe outorga esta honrosa distinção em latão e cuproníquel – eu de porte altivo num palanque engalanado, sim senhor. – Dê mas é isso para cá e feche essa cloaca, que tenho o guisado ao lume.
Os braços cruzados sobre o cume da barriga. Veste uma blusa castanha. O cabelo é branco, mas de uma alvura entrecortada por sombras de cinza. Mostra-se de óculos escuros, que escondem, é certo, dois olhos muito pequenos, pequeníssimas e estéreis ilhas em lagos de icterícia.
- O Hugh Grant é engraçado, mas não gosto dele. Do Sean Connery gosto. Ainda mais agora do que antigamente. Do Robert Redford também. Mas não agora. Na meia idade. Eles são mais bonitos quando estão na meia idade.
Nas carnes traz uma flacidez redonda de menopausa. Barriga rotunda, os seios duas massas mortas a apontar o umbigo. Calças cremes. Ao lado, um junco vestido de branco e mais além uma cana de bambu ataviada de soja a multiplicar raças e credos à cadência de um tambor de guerra.
- As tailandesas, as birmanesas e as vietnamitas são muito bonitas. Mas eles são tão feios… Onde vi homens feios foi na Coreia do Sul. A Coreia é muito bonita. A Coreia encantou-me.
De forma que não me lembro mais do sabor de uma língua, se me lembrasse juntava o sabor de uma língua a estas notas azedas que escrevo num caderninho de capa parda e a estupidez que me cerca acabaria por se diluir nas chávenas de café. De forma que soçobro neste canto de esplanada, uma mesa e sobre a mesa um copo e no copo um sumo de laranja e no sumo grainhas e nas grainhas eu própria, uma partícula sem significado algum, seca e antiga, uma ruína de árvore em terra queimada.

31 maio, 2008

Vor der Kaserne, vor dem großen Tor – stand eine Laterne und steht sie noch davor… (dois)

O torso de Júlia, uma bata de alvura incorruptível cingida em redor de seios secos por três botões de tamanho generoso, erguia-se de um balcão de mármore, por entre uma pequena montra de pirâmides de chocolate, pastéis de nata e mil-folhas e um maço de papel pardo. E no cimo do corpo esguio floria uma cabeça de barracuda, os lábios pintados de sangue coagulado num beijo de eternidade. E sobre tudo aquilo brotava uma quadrícula de galhos fulvos, que bonito era o cabelo de Júlia quando a camioneta da marcenaria ocultava e descobria o sol numa brincadeira de luz, em marcha à ré de encontro ao estuário de alcatrão na rua Dom Pedro IV. O lancil era portanto o cais das colunas do mundo de Júlia, uma porta de alumínio fuliginoso, amarela e verde, três paredes de ladrilhos brancos recortadas por uma linha de ladrilhos mais pequenos, pretos uns, lascados outros, uma bancada que servia de vale a serranias de carcaças e pães de forma, um padeiro desenhado em papel brilhante. Panificação Reunida de Queluz.
- Quantas quer? – perguntava Júlia, um saco de pano, PÃO, na mão direita e a comichão nas virilhas a desaparecer debaixo das unhas da mão esquerda, sobre a bata e uma saia de fazenda. – Ando chocha como o tempo, dói-me aqui e acolá, ali e alhures, e às vezes converso com um papo-seco ou um pão de Mafra, quando ninguém espreita das ombreiras da porta e pressinto o ataque epiléptico na curva da orelha, na estática da onda média daquele transístor, tem que esticar o pescoço se o quiser ver melhor, casado há anos com o telefone num nicho da parede, o meu neto trabalha na rádio, é locutor, declama anúncios de cremes de barba e sortidos de bolachas, de modo que o rádio a pilhas é o meu sol, os papo-secos são finas nuvens de farinha de trigo e o lancil é o cais onde embarco numa passadeira que me leva, acima abaixo nas ondas, até à outra margem, onde compro a hortaliça e a fruta, o xarope de groselha e uma caixa de bombocas para o meu neto, que é guloso, o tal que trabalha na rádio, creio que já o tinha citado, e declama anúncios, um imprestável, no fundo um maricas de merda, de modo que o sol anda quase sempre encoberto e dos cantos da minha boca nasce uma espuma grossa, bochechas abaixo em golfadas de tumulto, um espasmo, dois espasmos e o corpo retesa-se-me como uma rolha de cortiça, abro muito os olhos num espanto de coruja e depois passa. Quantas quer?
As mãos de Júlia, duas conchas de búzios rematadas por nódulos de artrose, distribuíam o pão a partir de grandes cestas brancas, PÃO pintado a vermelho-trincha no dorso de uma Macal Minarelli. E sossegavam a fome. E sossegavam ardores púbicos, coceiras de menopausa, que bonitas eram as mãos de Júlia quando somavam o preço de quatro carcaças e um bolo-rei numa tira de papel pardo. Que bonitas eram as mãos de Júlia, a cada falangeta um ponto cardeal diferente, a cada nódulo um pequeno sinal negro, acolá um rubro, nos punhos as sardas e debaixo das unhas compridas colecções de farinha e migalhas. Depositávamos a vida nas mãos de Júlia sem cuidar que nas mãos de Júlia havia vida.

24 maio, 2008

laranja (três, epílogo)

Código laranja. Doente a necessitar de atenção urgente. Na sala de urgências de um hospital de subúrbio, onde o salmão alastra pelas paredes e o sangue coalha esquecido num quadrado de chão, fino-me aos poucos, primeiro numa cadeira que não pode suster o meu corpo pendente, depois numa maca suja. Bracelete laranja na triagem. Uma etiqueta e um cateter a desabrochar azul do meu braço direito. O coração a fugir-me corredor fora e eu estendido numa maca suja a olhá-lo impotente e sem uma lágrima de força. Nisto dou por um estetoscópio a circum-navegar mamilos e tufos de pêlo. Inspira. Expira. Vou expirar aqui. Sinto que vou expirar aqui, de olhos ora no meu coração que desaparece na curva do corredor ora nos olhos aflitos que me guardam os passos desde que espreitei o mundo pela primeira vez. Depois a casa de banho, uma pouca de luz que não mitiga esta vertigem que trago há horas nas têmporas e no peito e uma catarata de mijo que se precipita vacilante na parede gordurosa de um urinol e nos extremos dos meus sapatos de pele coçada. Ou então acabo ali ao fundo, para lá de uma porta de contraplacado, de ventosas a escorregarem-me dos cabelos do peito untado de gel, o gráfico a hesitar aqui e além como um contratempo de Max Roach. Pam, pam, pam. Numa sala esconsa da escola D. Francisco Manuel de Melo, a professora de música ditava-nos assim o compasso – pam, pam, pampam, pam. E a minha cabeça vogava alhures nas mamas precoces de uma colega de turma entre um e outro pam. Um dia apanhou-me naquele sopor languescente do amor impossível.
- O menino saiu-me cá um porco, deixe-me que lhe diga – e eu deixei que ela o dissesse sem esboçar uma resposta, um vá chamar porco a quem a pariu de entre as nádegas, por exemplo, enquanto a turma ria do alto do que me pareciam ser camarotes de teatro e a colega das mamas torcia as sobrancelhas numa momice de nojo, náusea e escárnio, o mais aguçado escárnio, qual lâmina de canivete que me retalhava o coração para bifinhos de cebolada. – O coração retalhado é mais ou menos o que me trouxe cá, doutor, o coração retalhado, o formigueiro e este rumor de água a escorrer de uma fraga longínqua – e o médico muito preto a envolver-me o braço numa almofada de ar. – Diga-me com franqueza, doutor, vou acabar nesta maca suja, encostado a uma parede do corredor e o meu derradeiro vislumbre antes do peido capital será o de uma lâmpada fundida no tecto deste hospital sujo. É isto. Isto é tudo. Não é isto, doutor? – pergunto na direcção dos dentes muito brancos do médico, Dr. Albino escrito num rectângulo ao peito entre colchetes. – Não. Hoje não é dia de morrer.
Ainda.

23 maio, 2008

V’n wie kimt Ihr? (um)

Meio torso de padre Cruz expia de graça os males de que somos culpados. Fica a um canto da segunda de três pranchas que formam uma estante de montra. Agência Funerária. Também por lá param Nossa Senhora e a cabeça do Cristo a pingar sangue de uma coroa de espinhos em arame e com um olhar sofredor na direcção, presume-se, do Pai, dado que aponta as retinas para cima. Pagelas de santinhos em maços como baralhos de cartas, no topo São Sebastião a fazer lembrar uma almofadinha de alfinetes.
- Muito boa tarde. Como tem passado? O negócio vai bem. Trabalho não falta e Deus Nosso Senhor tem cuidado de mim, que também nunca lhe faltei com nada, salvo aquela vez, há muitos anos, em que me distraí por um instante e entrei pelas quinze e trinta e dois no cinema Olímpia, nádegas e todos os refegos concebíveis diante de mim, numa tela que, dir-se-ia, transpirava óleo de amêndoas doces, tão doces como os gemidos de uma actriz de pêlo farto, benza-a Deus Nosso Senhor, que eu gosto delas como verdadeiras vassouras de cantoneiro. Mas dizia eu que o negócio vai bem. Só aqui na rua, note bem, marcharam quatro em quinze dias.
No interior o mostruário de féretros e lápides, campas e adornos de jazigo, velas mortiças em pequenos castiçais vermelhos, a base em ouro-plástico. Ainda cheira a fruta e hortaliça, a restos pútridos de coelhos esfolados numa nesga de parede, entre um armário de madeira azul e duas folhas de papel lustroso, uma em cima, outra em baixo, a anunciar gasosa e bolachas Maria. Os coelhos eram esfolados numa parede, o sangue a pingar-lhes das carnes como hoje sucede ao Cristo só uma cabeça pálida e quebradiça sobre um quadrado de plástico e quatro letrinhas num autocolante prateado que querem dizer Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum. No lugar do balcão abaulado, que se erguia como as muralhas do Castelo de São Jorge a suster uma encosta de sacas de feijão e de milho, encontra-se agora uma secretária de alumínio e fórmica. Na parede onde os coelhos pendiam a morrer esfolados numa cúspide nasce um calendário, uma menina que ri imortal do alto de um vestido de alças vermelho, um pequeno cão no ninho dos braços. Agência Funerária.
- De maneira que não aguentei e esgalhei o limoeiro ali mesmo, na cadeira do cinema, à medida que na tela uma gorda encostava o rabo de rinoceronte a um vergalho que só visto, o senhor se visse até se torcia de impressão, para a frente e para trás, para a frente e para trás, para a frente e para trás.

21 maio, 2008

Teatro Alves Coelho

No Getsemani, semeado nas tábuas carunchosas do palco, João Bilha, artífice da odontologia de segunda a sexta-feira, Filho do Homem por uma noite pascal, ora ao Pai acocorado a um canto do palco, roçando com os braços suplicantes uma oliveira de contraplacado que ameaça a queda sonora desde as deixas inaugurais do acto. O que vem a suceder quando o demónio irrompe pelas cortinas laterais para poluir a alma de Bilha, o Cristo sexagenário de barriga conventual albardada num atoalhado de linho. Na plateia, devotas e acólitos fazem ranger as cadeiras com estremeções de riso contido e reverência curial, que haviam já ensaiado quando Bilha se vira grego, à mesa com Pedro e demais apóstolos, para quebrar à unha a côdea da broa e passar ao milagre do tinto com travo de groselha. É então que o filho de Maria é levado à força pelo braço armado do Sinédrio, disseminando-se o estupor por entre o público.

Bilha sofre, no acto seguinte, a flagelação de um látego de cordel sobre o mesmo atoalhado do Getsemani e da Última Seia, jamais expondo o torso flácido à apreciação das primeiras filas, onde pontifica o reitor ensonado. Não sem antes comparecer em audiência preliminar ante um Caifás de deixas reticentes e ser submetido à consequente encenação da turba na presença do procurador Pilatos, que se apressa a lavar as mãos num vaso de resina, anuindo ao clamor pela libertação de Barrabás. Muito depois de o povo calar os gritos espumosos, a voz sibilante, pró-Barrabás, de uma actriz recrutada ao bazar no centro da vila continuará, retardada, a ecoar até à derradeira fila do segundo balcão. Depois o palco é deixado a um solilóquio emocionado do Iscariotes, fatalmente corrompido pelos trinta dinheiros.

O Cristo de João Bilha serpenteia com a cruz sobre o ombro, para trás e para diante num palco a arquejar de elenco. O espaço escasseia, pelo que a Via Sacra é reduzida ao essencial; rapidamente emerge, em cena, o Cristo crucificado em gesso. Bilha só regressará ao palco para ressuscitar.


Nota: reciclado

fazendo uso do colete reflector, sinalize, de imediato, o local do acidente

Entardecer. No eixo da rotunda uma palmeira anã. Relva e lascas de pinheiro em redor do ornamento tropical alimentado a monóxido de carbono. Direcções. Algés, Lisboa, a auto-estrada. À direita. Viro à direita. Vou virar à direita. Viro à direita. Começo a despedir-me dos bosques de cimento de Alfragide. Para depois retornar a Alfragide. Retorno sempre a Alfragide. Por vezes tenho a impressão de que a minha vida é uma rotunda em Alfragide. Uma ocasião fui a palmeira e os carros eram Mercúrio, Vénus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Neptuno e Plutão - Plutão? Durou pouco. Alfragide é como uma puta esquálida e com dentes de platina que não conseguimos largar, a glande a latejar gonorreica e não conseguimos largá-la. A puta. Ontem fui Marte. E a translação da Terra foi desviada por uma momentânea desordem cósmica. Por um instante, as atmosferas fundiram-se como o palato da puta e as varizes do pénis de um aposentado do Ministério das Finanças, dióxido de carbono, azoto, árgon, oxigénio, água, néon. Em Marte uma cratera. Na Terra também.

19 maio, 2008

laranja (dois)

A mão direita sobre o peito. Um rumor em crescendo do estômago à garganta. A mão esquerda sem existir, uma vez que não há mão esquerda, apenas um talhe de carne morta e pendente. Inspira, expira, inspira, expira, inspira, inspira, inspira, inspira, inspira. Ar. Não há ar, assim como não há mão esquerda. E agora tão-pouco o braço. Esquerdo.
- Sente-se aí. Tenha calma – decreta a voz próxima e morna de uma boca que lembra cloacas, do alto de um branco de garça, na lapela o anúncio de um Enfermeiro com maiúscula e nos olhos uma inquietude de arganaz. – O doente entra sozinho, se não se importa.
Depois uma maca e sobre a maca um eu diferente do eu que ao fim da tarde rapava os pêlos do queixo e ensaiava as cadências de beijos impressionistas no sentido do espelho, diferente do eu que vestia uma camiza azul e calçava sapatos gastos na esperança mirífica de um abraço. Um eu dormente. Da mão esquerda para o braço, do braço para as pernas, das pernas para o braço cuja mão ainda há pouco sustinha o peito de welsh cob, enquanto um comprimido se desfaz nas catacumbas da língua.
- O que é que sente? – pergunta agora uma voz de régulo, o mesmo branco de garça, mas mais importante, um soba de estetoscópio, muito preto em redor de dentes que riem, a consultar o oráculo tremebundo no meu tórax de paquiderme. – Dói no peito? – e eu de beiços retesados a balbuciar um não no timbre da trompete de Bill Hardman em I mean you, tem piada pensar agora em Art e Thelonious, palavra que tem piada, embora não exista dos mamilos para sul, dado que dos mamilos para sul não há nada para além de um formigueiro e um rumor de água a escorrer de uma fraga longínqua.
De imediato um corredor, uma cigana perdida de porta em porta a perguntar muitas vezes se é agora e uma cocuana de olhar vago empurrada em cadeira de rodas na direcção de uma esquina. Luzes muito brancas que arreliam as pálpebras e a maca a deslizar de encontro a ventosas de octópode a escorregarem-me dos pêlos do peito.
- Prontinho. Deixe lá que há peitos piores do que o seu, ai se há - e um farrapo de papel absorvente a remover grumos frios de goma arábica.
O corredor. De novo o corredor. Sempre o corredor. Uma, duas, três velhas a compararem vagidos e eu na maca encostado à parede do corredor. Uma das velhas a olhar-me com uma estultícia de poedeira e a cigana a carpir-me a sorte. Uma, duas, três velhas e o rumor a desaparecer na transparência de uma radiografia.
- Hoje não é dia de morrer.

16 maio, 2008

cais


No teu cabelo há um vagar de enseada. Vagas preguiçosas. De vaga em vaga até porto seguro. No teu rosto há um areal branco e morno. Sulcos macios. De sulco em sulco até ao leito ardente dos teus lábios. Na tua boca há milénios de ternura. Néctar doce. De hausto em hausto até ao quasar do teu corpo. No teu peito há um leito de mansa perdição. Vágado de alcantil. De vertigem em vertigem até à queda lenta. Então amparas-me e repões a ordem do Universo sem contrapartidas. No teu cabelo torno a adormecer. Amado.


Fotografia: Paulo Lopes

15 maio, 2008

serviço público

Com uma ponta do garfo desenhava um rosto de mulher no charco de azeite, entre uma posta de bacalhau e um par de batatas que fumegavam. Lana Turner emoldurada a grão e cebola picada. A nordeste um copo de vidro grosso, a oeste um guardanapo de papel dobrado em triângulo. Daí a nada o busto de Lana Turner impunha-se à medida que o garfo escorregava no azeite, lânguido, a demorar-se em mamilos efémeros.
- Era a continha, se faz favor.
Aos sábados almoçava depressa, as espinhas a nascerem-lhe uma após outra dos lábios para a faca. Vestia o capote alentejano e apontava à Praça da Figueira com um saco de restos de papo-seco no bolso. Pombos a tarde inteira, a tarde inteira pombos, pombos a tarde inteira. A tarde inteira. Os pombos. Um cair das vinte e trinta e um de uma noite de sábado. Outono relutante.
- Não tenho o coração fechado. Palavra que não. Trago é aqui uma certa vontade de me deitar e morrer durante a noite a sonhar com as mamas da Lana Turner. E reencarnar num pombo da Praça da Figueira.
Aos domingos lembrava-se de outro Outono.
- Observem com atenção os movimentos que ensaio à chegada. As costas verticais, o garbo construído de nada. Os sapatos a percorrerem os linóleos e a pedra cheios de escrúpulo, que o rocio da manhã instala armadilhas antes e depois de uma escadaria de aço esburacado. Vejam bem esta reprodução amadora de um temerário. Atentem na voz sumida que sopra um bom dia. Este que enterra a pá em terra nova sou eu. Estudem-me. Apertem a minha mão direita e sintam-lhe a firmeza calculada, a geometria do encaixe. Apurem o azimute dos meus domínios e visitem-me de quando em vez. Estou mesmo ali, por detrás de um pilar de betão, sentado à secretária.

bilirrubina

Pedro roçava o extremo do nariz com o istmo da língua e acreditava ter nas orelhas o mesmo púrpura das extremidades de Amundsen no frio polar.

União Recreativa de Gândara de Espariz convida associados para assembleia geral extraordinária com vista à eleição de corpos gerentes.

Tabernáculo da fé, tabernáculo da fé. Espere. Já estou a ver. O senhor deixa Queluz como quem sobe para a Amadora, despeça-se das ruínas do Lido do seu lado esquerdo. Há uma rotunda. Segue em diante. Sobe, sobe, sobe. Vê um portão de garagem do seu lado direito, que é o oposto do esquerdo. É aí.

Almada é mais bonita de Inverno.

Queira Deus que a ampola não se me quebre dentro do bolso do casaco.

Uivemos ao Senhor.

Entropia é o que me acontece pela manhã.

Terá sido mais ou menos assim: a vida foi-lhe madrasta ao anunciar por via de um tumor na mandíbula que nunca mais poderia abrir nozes com os dentes.

Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

Pariu e em seguida olhou balindo de horror o fauno que acabara de dar à luz.

Andou perdido pelas neves da Serra da Estrela. Depois avistou ao longe a Torre e um autocarro de excursionistas de Santo António dos Cavaleiros. Sentou-se e deixou-se morrer.

Riu-se. Depois chorou.

Índio Apache aos fins-de-semana, Heitor trabalhava na repartição de finanças do Pendão de segunda a sexta-feira.

Uma vez, depois do almoço, Óscar desapertou três botões das calças e peidou-se com estrépito, acordando a bisavó que cabeceava no sofá.

14 maio, 2008

laranja (um)

Este temor resignado prepara-se a partir de ansiolíticos, antidepressivos e opressões no tórax, mais ou menos a meio, numa linha vertical que vai do umbigo ao pomo de Adão. Junte-se-lhe uma dor difusa que se enrosca no esófago num serpentear oleoso e uma combinação de sístoles e diástoles hesitantes. Digamos que pouco convictas. Digamos que a agitar a ameaça de greve. Digamos que a pedir outra ponte de comando que não a minha, onde todos, do comandante ao grumete, evitam o leme. Escalda. O leme. Envolver tudo. Polvilhe-se pepitas de chocolate amargo sobre a massa, que por esta altura deverá apresentar uma tonalidade amarelo-cobardia e a consistência de uma refeição de tentilhão jovem. Levar ao frigorífico. Para solidificar.
Pode ser que amanhã acorde em Assuão, depois de uma sesta morna no landau lascado de Ali. Ali era um puto tisnado e a estalar de esperteza. Onde pára Ali por estes dias? Chefiará mujahidines em Kandahar? Terá copulado com a sua noiva púbere de cotovelos fincados num tapete persa, as retinas de corvo a descreverem piruetas de prazer? A ponta da língua a despontar dos lábios agora aqui, depois ali, conforme as nádegas agora acima, depois abaixo. Agora acima, depois abaixo. Abaixo. Abaixo a boca áspera e seca. Abaixo o sedativo e o comprimido sob a língua, o torpor e o electrocardiograma, a torneira de plástico azul cravada no braço e o sorriso complacente de um médico de ébano.
- Hoje não é dia de morrer.

23 abril, 2008

receita de rissóis de camarão

Percorro um resto de rua em passo preguiçoso, numa cidade que adormece com o dia a meio. Uma cidade quieta. Luz, rio, eu, um degrau. A cidade quieta. De súbito uma ponte e telhados na ponta da esferográfica – Bic Cristal, a cidade aquieta-se na curva grávida de um b sulcado a Bic Cristal, consoante os pombos escorregam das estátuas morrediços de calor na ponta de uma Bic Cristal. Da cidade ao subúrbio são duas horas, quatro pombos sobre a calçada, três dedos de lágrimas, um homem de gabardina e calças de pijama a colher cotos de cigarros. Por vezes o percurso faz-se em escassos quatro autocarros amarelos, dois passeios rasgados, um farrapo de jornal de encontro a um poste de iluminação e duas putas avenida abaixo a pigarrear pintelhos. De maneira que às dezoito horas, vinte e oito minutos e cinco segundos começo a espreitar os nomes das ruas na azulejaria. Beatriz Costa!, anunciam nove azulejos. Deixo o carro. O vento despenteia-me. Foda-se. Só a base de um bolo de arroz é pior do que um risco em desalinho, a melena a ondular nos reflexos das montras. Descubro o número Seis A numa praceta entre prédios quadrados. Entro. Saio. Antes de regressar ao carro encosto o abdómen a um balcão de café, há pipis, há moelas, há um eu soturno num espelho a vomitar dedadas entre uma águia de loiça, uma garrafa de São Domingos e um frade de barro com um galhardete sobre os tomates. Do subúrbio à cidade são duas horas, oito pombos sobre a calçada, dedo e meio de lágrimas, um homem de calças de pijama e torso nu a fumar cotos de cigarros. Por vezes o percurso faz-se em escassos dois autocarros amarelos, um eléctrico, três passeios rasgados, dois missionários de Salt Lake City a passearem o chulé de meses por ruas estreitas e cais ferroviários e duas putas avenida acima, a primeira a coçar uma axila de sobrancelha franzida, a segunda a adivinhar vasos de manjericos no branco das nuvens. Acompanhar com arroz branco e uma salada de tomate.

21 abril, 2008

nós

Vejo-te debruçada num varandim de ferro verde. O Alva corre em tumulto aos teus pés e há um fragor de água e rochas. Não me vês. Olho-te daqui, na amurada sobranceira de um galeão de saibro, choupos e alcatrão, os pavilhões das serranias hasteados em mastros de xisto, entre silvados e giesta. Os teus olhos estendem-se a montante em melancolia-mel. Há cornucópias no teu cabelo à medida que a tua mão de leite se ergue mansa até aos lábios finos. Uma carícia pensativa. Vejo-te na moldura do ar húmido, o recorte do teu rosto macio na direcção dos seixos. Abraço-te à distância. Sentes-me? Adivinhas-me no teu encalço? Lanço a âncora aqui mesmo, neste recanto de afluente submisso. Entrego-me aos caprichos das tuas madeixas de anjo, adernando aos poucos num abandono doce.
- Gosto tanto de ti – dizes-me. – Quero ficar contigo.
Uma prece íntima, um tremor do peito, uma sede de nós, eu, tu, nós, um sussuro morno numa viela da orelha, o teu olhar a envolver-me em ternura. Encontrei-te. Cheguei.

11 fevereiro, 2008

casulo

Tenho isto para dizer. Sou tíbio. Quase translúcido. Tenho medo de amar. Não creio ser possível que venha a ser amado. A não ser pelos meus pais. A não ser pela minha irmã. A não ser pela minha avó, se a minha avó ainda me esperasse com um guarda-chuva à porta da escola no fim do Outono. Assusta-me correr. Assusta-me parar. Para pensar. O espelho é de evitar, assim como um qualquer olhar apontado ao meu olhar do extremo de um café de bairro onde o estuque ainda não secou. Gosto de morar sozinho. Por vezes não gosto. Obriga-me a pensar. Se me falam alto, murcho. Se me gritam, choro. Tinha isto para dizer.