15 maio, 2008

serviço público

Com uma ponta do garfo desenhava um rosto de mulher no charco de azeite, entre uma posta de bacalhau e um par de batatas que fumegavam. Lana Turner emoldurada a grão e cebola picada. A nordeste um copo de vidro grosso, a oeste um guardanapo de papel dobrado em triângulo. Daí a nada o busto de Lana Turner impunha-se à medida que o garfo escorregava no azeite, lânguido, a demorar-se em mamilos efémeros.
- Era a continha, se faz favor.
Aos sábados almoçava depressa, as espinhas a nascerem-lhe uma após outra dos lábios para a faca. Vestia o capote alentejano e apontava à Praça da Figueira com um saco de restos de papo-seco no bolso. Pombos a tarde inteira, a tarde inteira pombos, pombos a tarde inteira. A tarde inteira. Os pombos. Um cair das vinte e trinta e um de uma noite de sábado. Outono relutante.
- Não tenho o coração fechado. Palavra que não. Trago é aqui uma certa vontade de me deitar e morrer durante a noite a sonhar com as mamas da Lana Turner. E reencarnar num pombo da Praça da Figueira.
Aos domingos lembrava-se de outro Outono.
- Observem com atenção os movimentos que ensaio à chegada. As costas verticais, o garbo construído de nada. Os sapatos a percorrerem os linóleos e a pedra cheios de escrúpulo, que o rocio da manhã instala armadilhas antes e depois de uma escadaria de aço esburacado. Vejam bem esta reprodução amadora de um temerário. Atentem na voz sumida que sopra um bom dia. Este que enterra a pá em terra nova sou eu. Estudem-me. Apertem a minha mão direita e sintam-lhe a firmeza calculada, a geometria do encaixe. Apurem o azimute dos meus domínios e visitem-me de quando em vez. Estou mesmo ali, por detrás de um pilar de betão, sentado à secretária.