24 maio, 2008

laranja (três, epílogo)

Código laranja. Doente a necessitar de atenção urgente. Na sala de urgências de um hospital de subúrbio, onde o salmão alastra pelas paredes e o sangue coalha esquecido num quadrado de chão, fino-me aos poucos, primeiro numa cadeira que não pode suster o meu corpo pendente, depois numa maca suja. Bracelete laranja na triagem. Uma etiqueta e um cateter a desabrochar azul do meu braço direito. O coração a fugir-me corredor fora e eu estendido numa maca suja a olhá-lo impotente e sem uma lágrima de força. Nisto dou por um estetoscópio a circum-navegar mamilos e tufos de pêlo. Inspira. Expira. Vou expirar aqui. Sinto que vou expirar aqui, de olhos ora no meu coração que desaparece na curva do corredor ora nos olhos aflitos que me guardam os passos desde que espreitei o mundo pela primeira vez. Depois a casa de banho, uma pouca de luz que não mitiga esta vertigem que trago há horas nas têmporas e no peito e uma catarata de mijo que se precipita vacilante na parede gordurosa de um urinol e nos extremos dos meus sapatos de pele coçada. Ou então acabo ali ao fundo, para lá de uma porta de contraplacado, de ventosas a escorregarem-me dos cabelos do peito untado de gel, o gráfico a hesitar aqui e além como um contratempo de Max Roach. Pam, pam, pam. Numa sala esconsa da escola D. Francisco Manuel de Melo, a professora de música ditava-nos assim o compasso – pam, pam, pampam, pam. E a minha cabeça vogava alhures nas mamas precoces de uma colega de turma entre um e outro pam. Um dia apanhou-me naquele sopor languescente do amor impossível.
- O menino saiu-me cá um porco, deixe-me que lhe diga – e eu deixei que ela o dissesse sem esboçar uma resposta, um vá chamar porco a quem a pariu de entre as nádegas, por exemplo, enquanto a turma ria do alto do que me pareciam ser camarotes de teatro e a colega das mamas torcia as sobrancelhas numa momice de nojo, náusea e escárnio, o mais aguçado escárnio, qual lâmina de canivete que me retalhava o coração para bifinhos de cebolada. – O coração retalhado é mais ou menos o que me trouxe cá, doutor, o coração retalhado, o formigueiro e este rumor de água a escorrer de uma fraga longínqua – e o médico muito preto a envolver-me o braço numa almofada de ar. – Diga-me com franqueza, doutor, vou acabar nesta maca suja, encostado a uma parede do corredor e o meu derradeiro vislumbre antes do peido capital será o de uma lâmpada fundida no tecto deste hospital sujo. É isto. Isto é tudo. Não é isto, doutor? – pergunto na direcção dos dentes muito brancos do médico, Dr. Albino escrito num rectângulo ao peito entre colchetes. – Não. Hoje não é dia de morrer.
Ainda.