23 maio, 2008

V’n wie kimt Ihr? (um)

Meio torso de padre Cruz expia de graça os males de que somos culpados. Fica a um canto da segunda de três pranchas que formam uma estante de montra. Agência Funerária. Também por lá param Nossa Senhora e a cabeça do Cristo a pingar sangue de uma coroa de espinhos em arame e com um olhar sofredor na direcção, presume-se, do Pai, dado que aponta as retinas para cima. Pagelas de santinhos em maços como baralhos de cartas, no topo São Sebastião a fazer lembrar uma almofadinha de alfinetes.
- Muito boa tarde. Como tem passado? O negócio vai bem. Trabalho não falta e Deus Nosso Senhor tem cuidado de mim, que também nunca lhe faltei com nada, salvo aquela vez, há muitos anos, em que me distraí por um instante e entrei pelas quinze e trinta e dois no cinema Olímpia, nádegas e todos os refegos concebíveis diante de mim, numa tela que, dir-se-ia, transpirava óleo de amêndoas doces, tão doces como os gemidos de uma actriz de pêlo farto, benza-a Deus Nosso Senhor, que eu gosto delas como verdadeiras vassouras de cantoneiro. Mas dizia eu que o negócio vai bem. Só aqui na rua, note bem, marcharam quatro em quinze dias.
No interior o mostruário de féretros e lápides, campas e adornos de jazigo, velas mortiças em pequenos castiçais vermelhos, a base em ouro-plástico. Ainda cheira a fruta e hortaliça, a restos pútridos de coelhos esfolados numa nesga de parede, entre um armário de madeira azul e duas folhas de papel lustroso, uma em cima, outra em baixo, a anunciar gasosa e bolachas Maria. Os coelhos eram esfolados numa parede, o sangue a pingar-lhes das carnes como hoje sucede ao Cristo só uma cabeça pálida e quebradiça sobre um quadrado de plástico e quatro letrinhas num autocolante prateado que querem dizer Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum. No lugar do balcão abaulado, que se erguia como as muralhas do Castelo de São Jorge a suster uma encosta de sacas de feijão e de milho, encontra-se agora uma secretária de alumínio e fórmica. Na parede onde os coelhos pendiam a morrer esfolados numa cúspide nasce um calendário, uma menina que ri imortal do alto de um vestido de alças vermelho, um pequeno cão no ninho dos braços. Agência Funerária.
- De maneira que não aguentei e esgalhei o limoeiro ali mesmo, na cadeira do cinema, à medida que na tela uma gorda encostava o rabo de rinoceronte a um vergalho que só visto, o senhor se visse até se torcia de impressão, para a frente e para trás, para a frente e para trás, para a frente e para trás.