22 julho, 2010

ponto de exclamação

Ósimo não dormia há setenta e duas horas no afã de escrever o mais belo texto em prosa da sua praceta, pelo que decidiu cobrir com um roupão o corpo despido e sentar-se a um canto da marquise amortalhada em alumínio, próximo da gaiola onde um bico de lacre se borrava sobre esmaecidos farrapos de semanário, a ler Júlio Dinis, primeiro, e João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett, mais tarde. Erguer-se-ia ao cabo de instantes, um resto de escroto a surdir-lhe quebradiço de entre as abas em turco, exclamando que aquilo que realmente queria escrever era um poema sobre os canteiros de brincos de princesa da vizinha do rés-do-chão. Em seguida morreu.

21 julho, 2010

reticências

Pela manhã experimento um peso de séculos sobre os ombros, um cingir de garrote em redor do pescoço, um estalar de vértebra a meio das costas, um esgaçar de polé nos joelhos, um falsete de castrado na voz, um tormento de Santo Ofício nas solas dos pés, um prurido de benzina nas virilhas, um sino de campanário nos ouvidos, um sabor a salsugem na língua, uma humidade de Setembro a despontar cristalina das pestanas, em sorumbáticas gotículas de rendição.

20 julho, 2010

mao

..."Hsüeh ya tung yün pai hsü fei
wan hua fen hsieh yi shih hsi"...


O sopor da carpa a roçar a superfície no chafariz de Massamá é uma longínqua tarde de segunda-feira, passos de chumbo no sentido da escola, para lá de ruas com nomes de flores. Verde e branco nas paredes. Cinzento entre as têmporas. Uma ruína de diesel a pingar das narinas. O paralelepípedo da Rodoviária Nacional a desaparecer num cotovelo da estrada, ao fundo.


Pigarros de motorizadas terra acima, terra abaixo, um malmequer histriónico no teu capacete cor de cereja, quando te aproximas em perigoso equilíbrio sobre as pedras que brotam desarrumadas do saibro, o que resta das espirais do teu cabelo de amêndoa a esvoaçar sobre os ombros de vestal. Os teus olhos sorriem-me. E eu confio os meus à estrada em desalinho, pálpebras em losango, a desfalecer de vergonha à medida que contraio o ventre para esconder a albarda de costeletas de porco com batatas fritas e miolo de papo-seco, sem compreender que dali em diante não voltarei a erguer a cabeça.

08 julho, 2010

pessoa, Pessoa

..."Braços cruzados, sem pensar nem crer,
Fiquemos pois sem mágoas nem desejos; Deixemos beijos,
pois o que são beijos? A vida é só o esperar morrer."...


Massa folhada. O meu ventre esbarronda-se em demorados grumos de banha sobre a fivela do cinto, o bico da mama a deformar-se à medida que o peito cede à gravidade. Inspiro. Expiro. Hei-de tornar a inspirar, adiante, quando o ácido e o gás se enroscarem esófago acima em eflúvios de chouriço de sangue e podridão de morte à distância de dois segmentos de escada. Creme de ovos. Amanhã é que vai ser. A bicicleta. O capacete. A garrafa de água. As nádegas a gemerem de dor, rubicundas sobre o selim. A vida refém de um resto de saliva nos açudes da mandíbula. Hás-de ver. Olarilolela. Chocolate. Uma torrada, não, pão com manteiga, não, uma lata de salsichas, não, uma omeleta, não, uma malga de cereais, não, um pacote de bolachas, não, um pacote de bolachas com pepitas de chocolate, não, um pacote de bolachas de chocolate, não, um pacote de bolachas de água e sal, não, um pacote de bolachas de água e sal e um frasco de compota, não, um frasco de compota e uma colher de alumínio, não. Sim. Açúcar. Certa vez, Napoleão escreveu à filha de Francisco e Maria Teresa de Bourbon-Sicília dizendo-se “fatigado de ter trabalhado todo o dia”. Cuidai bem. Em seguida foi andar a cavalo. Cuidai melhor. E não me forniquem a paciência. Mil-folhas.