19 maio, 2008

laranja (dois)

A mão direita sobre o peito. Um rumor em crescendo do estômago à garganta. A mão esquerda sem existir, uma vez que não há mão esquerda, apenas um talhe de carne morta e pendente. Inspira, expira, inspira, expira, inspira, inspira, inspira, inspira, inspira. Ar. Não há ar, assim como não há mão esquerda. E agora tão-pouco o braço. Esquerdo.
- Sente-se aí. Tenha calma – decreta a voz próxima e morna de uma boca que lembra cloacas, do alto de um branco de garça, na lapela o anúncio de um Enfermeiro com maiúscula e nos olhos uma inquietude de arganaz. – O doente entra sozinho, se não se importa.
Depois uma maca e sobre a maca um eu diferente do eu que ao fim da tarde rapava os pêlos do queixo e ensaiava as cadências de beijos impressionistas no sentido do espelho, diferente do eu que vestia uma camiza azul e calçava sapatos gastos na esperança mirífica de um abraço. Um eu dormente. Da mão esquerda para o braço, do braço para as pernas, das pernas para o braço cuja mão ainda há pouco sustinha o peito de welsh cob, enquanto um comprimido se desfaz nas catacumbas da língua.
- O que é que sente? – pergunta agora uma voz de régulo, o mesmo branco de garça, mas mais importante, um soba de estetoscópio, muito preto em redor de dentes que riem, a consultar o oráculo tremebundo no meu tórax de paquiderme. – Dói no peito? – e eu de beiços retesados a balbuciar um não no timbre da trompete de Bill Hardman em I mean you, tem piada pensar agora em Art e Thelonious, palavra que tem piada, embora não exista dos mamilos para sul, dado que dos mamilos para sul não há nada para além de um formigueiro e um rumor de água a escorrer de uma fraga longínqua.
De imediato um corredor, uma cigana perdida de porta em porta a perguntar muitas vezes se é agora e uma cocuana de olhar vago empurrada em cadeira de rodas na direcção de uma esquina. Luzes muito brancas que arreliam as pálpebras e a maca a deslizar de encontro a ventosas de octópode a escorregarem-me dos pêlos do peito.
- Prontinho. Deixe lá que há peitos piores do que o seu, ai se há - e um farrapo de papel absorvente a remover grumos frios de goma arábica.
O corredor. De novo o corredor. Sempre o corredor. Uma, duas, três velhas a compararem vagidos e eu na maca encostado à parede do corredor. Uma das velhas a olhar-me com uma estultícia de poedeira e a cigana a carpir-me a sorte. Uma, duas, três velhas e o rumor a desaparecer na transparência de uma radiografia.
- Hoje não é dia de morrer.