16 agosto, 2008

compulsão

Um pequeno charco de água suja em Peniche. Não o salitre nas paredes do forte, não uma gaivota sobre um pináculo esférico na Avenida do Mar, não a quadrícula na calçada, não uma muralha escalavrada, o viço de ervas daninhas nos interstícios das pedras, não estes três velhos a darem à costa num vagar de algas na maré baixa, atracados a uma mesa de esplanada, o primeiro uma camisola castanha, dois anéis e um chapéu de chuva azul de uma para outra artrose, os demais dois ganchos a governar fios grisalhos de cabelo em ruína e uma bóina cinzenta, casados, creio que casados, de certeza que casados há pelo menos tantos anos como as pregas no reboco do forte, não o caminhar tonto de um solitário do lancil para o alcatrão, não o ouro de brincos a pender em lágrimas nos flancos de um promontório no lugar de um queixo, um Cabo Carvoeiro de tegumento e penugem esquecida, não um casal de suecos, nos ombros chagas de sol, nos sovacos o odor de pombais abandonados, não um brinquedo de plástico nos dedos minúsculos de uma criança que se baba e ri, não um pregão de peixeira, escamas no sabugo de uma unha, não um par de óculos escuros a medir nádegas e peitos numa esquina da praça, não um pescador de ferro forjado de costas para o mar, de remo ao alto diante de caldeiradas e santolas, não o ordinário estalido de chinelos de encontro ao cais de embarque para a Berlenga, não eu. Um pequeno charco de água suja em Peniche. Penso no pequeno charco de água suja em Peniche e em tudo o que um pequeno charco de água suja em Peniche encerra e comanda.
- Veste uma camisa, Vítor, ceifa a barba que desponta das tuas mandíbulas, Vítor, que eu atavio-me de brocados e pérolas, Vítor, visto uma blusa vermelha sangue de boi e ponho a cara caiada numa alvura de gueixa, Vítor, tu um samurai de Peniche, Vítor, afianço-te que a Avenida do Mar será nossa, Vítor, que as lagostas farão vénias respeitosas no fundo do aquário da cervejaria, que os restos de chuva na calçada secarão à nossa passagem, Vítor, monarcas dos faróis e dos molhes. Que bem que dançaremos os dois, Vítor, rutilando no terreiro como um par do cinema. Amas-me, Vítor? Diz-me. Conversa comigo, Vítor. Diz-me que estou bonita. Elogia-me o verniz das unhas, Vítor. Mostra-me que ainda és homem, Vítor.
O forte, a gaivota, a calçada, a muralha, as pedras, os três velhos, o solitário, os brincos, um casal de suecos, a criança, a peixeira, os óculos escuros, a estátua, os calcanhares, eu e o olhar triste de Vítor. Não. Um pequeno charco de água suja em Peniche.