26 agosto, 2008

detergente

A morte consiste em deixar de ir comprar pão ao extremo da rua pelas oito horas. Acordar é negligenciável, uma vez que dormir também o é. Desaparece a necessidade de cuidar da higiene. Madeira, cadáver, cetim e sobre o conjunto uma manta de veludo púrpura debruada a ouro. Pela manhã, persiste o aroma das azáleas depositadas de véspera numa jarra de mármore a um canto da campa. Morrer pode ser bom na medida em que a transpiração cessa. Por outro lado, sabe-se que unhas e cabelos podem continuar a crescer por tempo indeterminado, por vezes até à transferência de tíbias, rádios, cúbitos, vértebras, maxilares e falanges da terra para uma gaveta a que se justapõe uma fotografia a sépia e ovalada. Acaba-se a saliva, o cerúmen, o muco e o esperma. De um só golpe, finda-se o cuspo, o prurido no conduto auditivo externo, a irritação das mucosas, a masturbação, o coito e as nódoas desmaiadas a meio do lençol. De Inverno não se experimenta o frio. De Verão o calor não incomoda. É certo que não mais se pode comer mil-folhas na pastelaria Estrela entre menopausas, laca e lavanda. No entanto, termina o fenómeno da fome, pelo que termina a gula e, a jusante, a dificuldade em arquear o tórax para unir os atacadores. Acaba o cansaço. Descanso eterno. Ao principiar a noite, o sol oblíquo acende uma cruz de latão na lápide. Por perto um torrão húmido e gerânios de plástico. Uma coluna de formigas desce um outeiro de terra e naufraga em gravilha. Mas tudo isto importa pouco, pois tem lugar à superfície. À noite o vento assobia entre jazigos. Sem contudo incomodar.