15 agosto, 2008

auto da fé

Juro-te, crítico relapso, que ao abrir as pernas, convidando-me solícita a afundar-me entre os filetes húmidos do amor lúbrico, libertou bafios de cave antiga e que no jarro sobre um naperon a um canto da mesa de cabeceira lacada pereceram desde logo dois cravos e uma túlipa. Quanto a mim, limitei-me a perder os sentidos, para de imediato ser devolvido à miséria da consciência por um par de incisivos em matizes de manteiga que me maceravam lenta e languidamente as cartilagens da orelha.
- Gostas assim, riqueza? – perguntava-me de lábios acoplados à curva do meu queixo.
Depois principiei a experimentar-lhe nas palmas das minhas mãos retesadas as cerdas das coxas e demais imprecisões da carne, de modo a tomar o peso e a forma a uma fealdade de bairro social, de alfaces, tomates e anéis desmaiados de cebola abandonados em alguidares azuis, de pequenas concreções de merda em gaiolas de periquitos, bicos de lacre e canários.
- Isso. Anda. Arremete como os elefantes de Aníbal.
Napoleão, contaram-me certo dia a partir de Umberto Eco numa mesa de café, mandava instruções do jaez higiénico a Josephine, quando em campanha. Pedia-lhe que resguardasse aromas, que se abstivesse de se lavar entre as virilhas nos derradeiros dias antes do retorno do soldado. Como o percebo, crítico impenitente, agora que me ocorre uma unha estaladiça de indicador a sulcar-me lenhos de sangue no lombo.
- Agora por detrás.
E as nádegas esbarrondam-se de encontro à minha pélvis num ir e regressar de báscula, um enormíssimo bacinete de sul a norte e de norte a sul à cadência de um malho de partir calçadas entre os calos e os cravos nas mãos de um romeno. Eis-nos, estimado crítico atreito à fatal deliquescência dos biltres, eu e uma puta furtada a um vão de escada na Praça da Figueira, os dois, amando-nos num quarto de pensão, uma cama de ferro, um mosaico canceroso, uma cómoda, um casaco de malha a morrer sobre uma camilha de tule e Jesus de dedo espetado e olhos suplicantes a perguntar pelo Pai numa imortalidade de papel lustroso.