09 dezembro, 2008

seis, sete e oito (um)

Por veredas de sobreiros, ciprestes e oliveiras construímos um caminho plácido. Há uma paz de musgo nas penedias. Ao longe um touro vago entre vacas vagas, quase glaucas se a bruma levita, fulvas se o sol faz prova de vida entre cachos de nuvens de carvão.

No prato repousam plumas de porco preto, adiante um par de botas alentejanas, lá fora um capote gasto, erosão de décadas em paralelos e lancis, uma muralha, um busto, um charco de leite azedo, não água, leite azedo, canteiros de hidrângeas a tremer de silêncio, humidade e frio. Nisa.

Ao entardecer adensa-se um nevoeiro que tomba de chaminés, calhas e beirais. E o vento empurra corpos quebrados, ombros em ruínas, para as portadas da igreja matriz, para luzes morrediças em postigos ou janelas em cruz, para um linguajar salgado e indolente, para uma miopia baça à mesa de um café, à mercê de vapores de chá verde e migalhas de biscoito e chocolate.

Lá fora a chuva. Cá dentro a calda de açúcar num terçar de íris apaixonadas. Castelo de Vide.


Praça Dom Pedro V. As pálpebras miasmáticas como a luz, os lábios a agonizar como os olhos numa ausência de ruminante.

- Temos prospectos, mas apenas em Francês ou Castelhano, temos restaurantes, estão nos prospectos, temos um percurso, está marcado a azul nos prospectos, não sei se sabe que temos prospectos, mas somente em Francês ou Castelhano, por vezes arrisco um sorriso, mas apenas com a tragédia de uma vizinha, somente com um regato de saliva no queixo de um aleijadinho, ou o nariz do meu Isidro a farejar-me a nuca à meia-noite de quinta-feira, sempre à meia-noite de quinta-feira, ai tesouro que trazes a dobrada escorregadia como o empedrado da Rua 8 de Infantaria. À volta? À volta há prospectos como estes, talvez em Mandarim, talvez abandone este balcão, talvez deixe esta morrinha e o vento polar, talvez pinte as unhas de sangue, o cabelo de cobre, talvez parta para Cáceres, talvez parta para Lisboa, no bolso um saco com farelos de bolacha para atirar aos pombos na Praça da Figueira, entre pretos, paquistaneses e turistas de sovacos negros.

Casa do Parque. Este meu caminhar é um esquife escalavrado a adernar numa margem do Tejo, o meu bigode um castelo de popa a esbarrondar-se de caruncho e podridão. Caminho oblíquo como a chuva que enverniza a Rua Direita do Castelo ou o Passo Quedo, os colunelos e o corrimão à distância de um passo e um passo à distância de um anel de Saturno, o degrau à distância de uma lágrima, da pálpebra para a laje, e uma lágrima à distância de um nome, Ana, uma confusão de aranhiços e casulos de bichos da seda entre as têmporas que apenas um nome, Ana, somente um nome, Ana, pode sossegar, um nome, Ana, precedido de uma ordem, olha, Ana, olha, Ana, olha, Ana, olha, Ana, olha, Ana, olha, Ana, olha, Ana.

- Foi uma trombose. Isto foi uma trombose – e deixo que olhares alheios se contraiam num prisma de comiseração, num triângulo isósceles de piedade benfazeja, num arrepio de reticências.

Judiaria, Rua Bartolomeu Alves da Santa, Avenida da Aramenha, quarto número cento e cinco. A tua anca é sinuosa como estas ruelas de casebres. Ao fundo uma capela, lá dentro um altar, bancos corridos e varizes em genuflexão, um êxtase de acto de contrição, uma comunhão de mãos sob um cobertor, uma alquimia de lábios sôfregos, a incomparável virtude de dedos suaves no rosto.

O teu cabelo é uma estrela de David numa placa de pedra de lioz.

- Aqui reino – dizes. - Aqui deito gigantes por terra com um rápido vibrar da minha funda. Olhai. Tombai de amor no mármore dos meus ombros, no leito do meu ventre, na cornucópia barroca da minha orelha, no ângulo impossível das minhas pálpebras felizes, na carne tenra que arrasta olhos gulosos e prende mãos famintas, nos meus pés de gueixa e no meu peito de vestal.