29 dezembro, 2008

a de antónio

Tive pai. Palavra que tive pai. Era um par de mãos de cortiça húmida nos extremos de braços que segregavam sangue venoso. Sangue que se quedava coalhado, do vermelho para o castanho e deste para uma podridão azulácea. Era um fiapo de fígado macerado em açúcar, aguardente de mel e vinho novo. O fígado do meu pai chorava, salvo quando a cortiça das mãos me pintava equimoses nas mandíbulas e nas maçãs do rosto, roxas como brincos de princesa a medrar em latas de óleo e garrafões de lixívia que a minha mãe convertia em vasos. Então sorria. Uma vez o fígado do meu pai arriscou um soneto de restos azedos de canja e empadão, os joelhos da minha mãe esmagados de encontro ao linóleo enquanto um pano puído enxugava duas quadras e dois tercetos que consistiam em três moelas e o que me parecia ser uma pevide. O meu pai chamava-se Francisco. Era uma boina a resvalar de uma cabeça que pendia de absentismo a um canto da cozinha, junto ao lume da salamandra, um fiozinho de baba suja a gotejar entre roncos das esquinas dos lábios para a mão de cortiça que lhe sustinha o queixo escalavrado. Era um homenzinho de olhos vagos a imitar alambiques no dia da minha comunhão solene, o corpo insonso e pegadiço de Cristo a cair de espaldas nas minhas mãos em concha e o queixo desdenhoso do meu pai a designar-me dos derradeiros renques de bancos da capela.
- Que pena não ter perdido os tomates para uma mina ou uma bala perdida de um guerrilheiro na Guiné – pensava o meu pai, que era um par de mãos de cortiça húmida nos extremos de braços cobertos de sangue coalhado, pranto artístico da doença que o impedia de saciar os refegos da minha mãe entre lençóis de flanela. – Vira para cá o canjirão, tu – segredava o meu pai numa curva de orelha. – Nem que o untasses de resina – respondia a minha mãe num enfado de acólito na primeira eucaristia de domingo, uma parte de vinho, duas partes de água, uma parte de morte na vida de todos os dias. – Que pena não ter sido partido em dois por um morteiro soviético.
De forma que me acho agora melhor do que o meu pai, apesar de não me lembrar para que servem as ferramentas, de como se corta um caixilho, como se apura a esquadria, de uma noite de sono, como sorrir, como chorar, como amar, do dia em que nasci, mas sobretudo do dia em que morri.