30 dezembro, 2008

seis, sete e oito (dois)

Cubro uma camisola de lã e uma saia de fazenda com um bibe desmaiado, um vermelho moribundo e orlado a branco, nódoas transpiradas para a costura de mangas furtivas e no pulso inteiriço um relógio a oxidar horas entre paredes quietas. Dos lóbulos das minhas orelhas pendem lagrimazitas de ouro, deixou-mas a minha avó, coitadita, que também moldava presépios, santinhos de face tumefacta, casinhas térreas com telhados imperfeitos, andorinhas e milhafres, poedeiras e cestinhos de ovos. Um dia, enquanto esperava a carícia da morte numa cama de ferro, com uma Senhora da Penha em gesso a velar-lhe os miasmas sobre um naperon na mesa-de-cabeceira, pediu que lhe trouxessem um pedaço de barro antes de tossir o resto de bofe que ainda a prendia a um quartito de pobres, febril de bafios e vozes pretéritas. Amassou um pénis de glande descoberta e a explodir de varizes e decretou que o entregássemos ao prior sem atalhar mais explicações, que ele compreenderia apesar dos soslaios indignados.
- Esse porco – rosnou. E a luz dos olhos apagou-se-lhe ali mesmo, o buço e os sulcos do queixo a descoserem-se num sorriso astuto.


À razão dos anos chorados pelos algerozes da vila, o meu cabelo fez-se barro, assim como os dedos se fizeram barro e o coração se fez barro. Agora que penso nisso concluo que toda eu me fiz barro, moldada a esta cadeira de carvalho, a esta mesa de aglomerado, aos brados de espanhóis, à indiferença de quem aqui entra, à indiferença de quem daqui sai, a este anjito de asas desiguais e crânio oval que me nasce das falanges sem dores de parto, senti-as certa vez, saiu-me um anjito assim como este. Depois cresceu e partiu para Cáceres, depois para Córdoba e por fim para Barcelona, de onde recebi o último postal com uma revoada do que me pareceram pombos na Praça da Catalunha, já lá vão, esperem, deixem-me ver, parece-me que oito anos. Por vezes ainda tento moldar o rosto do meu filho na cabeça gorda de um menino Jesus, mas já só me ocorre o cheiro a pureza que lhe sentia na cabecita quando acabava de o lavar numa tina de esmalte, as gargalhadas de filigrana que me redimiam de dias perdidos, de ausências, de esperas, de uma carestia da carne e do suor que só me abandonou quando se me secou o ventre numa taxidermia de esquentamentos.
- Vou para Espanha – anunciou-me numa manhã de Dezembro parecida com esta que vos trouxe a Marvão, o nevoeiro branco a juntar-se ao branco do casario que resvala colina abaixo, na mais bonita desordem que algum dia conheci, o som das botas sobre os seixos molhados da rua a desaparecer num arco da muralha, eu a desaparecer com ele para dar lugar a este torrão de barro numa salinha de museu. Mas obrigado por terem vindo. Obrigado por terem vindo.