07 dezembro, 2005

ambivalências


Leio a entrevista de Jung Chang ao Diário de Notícias e rememoro dois textos.

O primeiro é um ensaio de Duo Duo, poeta pequinês que abandonou, em 1989, a China de Deng Xiaoping – uma caliginosa crisálida que caminhava no sentido da apostasia dos preceitos económicos de Mao enquanto massacrava os seus filhos na Praça Tiananmen; o segundo é uma transcrição mais ou menos retocada, mais ou menos fiel aos acontecimentos – entre outras tantas que acenderam o fervor revolucionário de muita da intelectualidade europeia de 60 e 70 -, de uma alocução de Mao Tsé-tung na abertura da Primeira Sessão Plenária da Conferência Política Consultiva do Povo Chinês, datada de 21 de Setembro de 1949.

Um e outro desdizem-se. Como em todos os exercícios de saúde intelectual deste tipo - que todos os comunistas, da ortodoxia à heterodoxia, com uma paragem para meditação na catalepsia, deveriam repetir várias vezes ao ano -, um e outro cindem o autismo nostálgico de uma mentira, talvez a maior da História, e a dor inelutável da inocência perdida. Ainda há quem se esforce por alombar com ambos numa coexistência impossível. Não sei se isso não me comove.

Do primeiro recorto um parágrafo.

«Tudo se passou pouco antes do início da Revolução Cultural. Na parede ao lado da minha cama estava pendurado um cartaz com uma citação de Mao Tsé-tung: "Durante a época de trabalho no campo, devem comer-se alimentos sólidos; nos períodos em que não há muito para fazer, devem comer-se alimentos sólidos e líquidos, em partes iguais, e reforçá-los com batata e batata-doce". Conhecia todas as palavras de cor, embora não conseguisse perceber o seu significado. Todos os dias, antes de adormecer e depois de acordar, observava atentamente o cartaz e voltava a lê-lo. Não conseguia compreender por que motivo o nosso líder nos havia de dizer o que tínhamos de comer. Hoje, acredito que se se transformasse aquela citação num quadro, qualquer um a compreenderia: nos vastos campos não há nada para colher, 20 milhões de pessoas morrem à fome, porque não têm nada para comer. É por isso… É por isso que não se podia exprimir por intermédio da linguagem pictórica, só por palavras.»

Do segundo recorto três linhas.

«Senhores delegados, estamos convictos de que o nosso trabalho ficará na história da humanidade, a demonstrar que o povo chinês, compreendendo um quarto de toda a humanidade, se pôs de pé.»

As nove centenas de páginas de Mao – A História Desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday, situam-se muito para lá da implosão ideológica, a jusante do conflito interior ou da persistência da negação, da capitulação amuada do idealismo de antanho ou do trabalho de mineração, diário e quase obsessivo, em busca do aproveitável. É uma desinfecção da História que coloca num único plano tenebroso o Mao das grutas de Yan’an e o Mao baboso jarreta que enfeitava o leito com jovens amantes. Não sei se isso não me comove.

Créditos: O Figueiredo

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