05 dezembro, 2005

uma nota de vinte escudos numa caixa de sapatos


As noites dos meus domingos são isto - o cheiro de uma colecção de notas esquecida numa esquina da arrecadação. Daí a uma hora, cabeceio de sono com anotações bolorentas, creio que da minha esferográfica, e a fotocópia de uma crónica de Fernando-António Almeida nas mãos, meia dúzia de linhas antigas a sulcar um farrapo de papel quadriculado e mascarras várias em folhas que desenterrei na cova mais funda de uma gaveta; histórias do Santo Ofício e da sua piedosa missão, anoto no esforço da vigília. E então, entre o capitular das pálpebras e um sussurrante adágio de Dvorák, reza a fotocópia - acompanhada dos gatafunhos acenosos no farrapo de papel, creio que da minha esferográfica, não sei se me repito, não sei se sustenho as pálpebras - que, em 1546, Francisco Xavier andava inquietado com a higiene espiritual da Índia. Vai daí escreve a El-Rei D. João III: "A segunda necessidade que a Índia tem para serem bons cristãos os que nela vivem é que mande Vossa Alteza a Santa Inquisição. Porque há muitos que vivem a lei mosaica e seita mourisca sem nenhum temor de Deus e vergonha do mundo". Pelo "temor de Deus" e pela "vergonha do mundo", gloria in excelsis Deo, instalou-se o Santo Ofício em Goa no ano de 1560. E aqui ao lado uma nota de vinte escudos, tão surrada; Garcia de Horta, cristão-novo, um cartapácio na mão esquerda e um olhar pétreo. A irmã de Garcia, Catarina de Horta, espreito-a nas grilhetas da Inquisição em 1568, nesta confusão do sono e de Dvorák, agora allegro molto. Catarina a denunciar o irmão finado; que isto e aquilo, que fez e aconteceu, que Garcia disse - eu seja ceguinha!, imagino-a a gemer - que "Nossa Senhora era uma mulher como ela e que seu filho não era Deus". Depois, as carnes de Catarina a grelharem num Auto da Fé na lareira do sexto andar. E o esqueleto de Garcia de Horta, sábio no "curar de física", exumado à Sé de Goa por instrução do Santo Ofício, tíbias, rádios e cúbitos queimados no fogo do Senhor e soprados ao mar. Até amanhã.

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