21 novembro, 2005

gabriela

Aos domingos acordo com pena de existir; uma mão-cheia de água de lava-loiça a remir-me os cantos da boca e as persianas pesadas dos olhos, a remover magenta e saliva seca, a minha e a de quem me calha numa taluda de noites abafadiças, tabaco de arquipélago e vãos de escada que se desfazem em caliça e bolor. Numa igreja de cinescópio, a circunferência do corpo de Cristo em plano picado, o branco anémico de um profeta gemebundo numa cruz de pão sem sal, entre as unhas limadas de um padre de estola púrpura e sobrepeliz lavada - ainda a primeira luz não acendeu os enxames de varejeiras e os restos de obras nas traseiras do prédio e já lhes sinto o arrependimento nas camisas abotoadas à pressa, nos passos culpados sobre os tacos do soalho, nos polegares discretos e aliviados a afastarem o trinco da porta sem um até logo, um obrigado, uma carícia doce do indicador e do anelar na voluta da minha orelha, compondo uma madeixa desbotada, sem um número de telefone apontado na bissectriz de um guardanapo de papel, como nos filmes.
- Porque me abandonaste? - pergunto-lhes num sussurro sozinho.
Aos domingos, quando a meia de leite e os grumos de coco sobre o pão de deus distam dezenas de estocadas de sandálias e joanetes da minha porta ao extremo da praceta, há uma claridade noviça e sebes estioladas que desenham frontispícios mouriscos nos contentores de lixo e nas tampas de esgoto, e isso é bonito; há a campa de um eu num canteiro esquecido, mais ou menos ao lado de um Alhambra tisnado de sombras.

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