29 novembro, 2005

renda de bilros

Uma cedilha ditou-lhe a crueza de um vão de escada. Isso. Por aqui. Não há tempo para mais. Duas horas e treze minutos, o coalho do leite ao abandono numa caneca e o guache das ideias, tão colorido no ocaso, a fazer-se agora sépia, a mando do relógio. Entro na brenha e não se fala mais nisso.
- Escreva lá o postalinho, Soraia, e encoste-o aí ao cabaz – disse o senhor Duarte, que eu bem ouvi, a apontar a barbatana de um bacalhau, um pacotinho de pinhões e uma garrafa de Porto numa mortalha de celofane amarelo.
Uma pobreza de caixas de cartão, dizia eu, e pacotes de bolachas de água e sal murchas de humidade; passar as noites aconchegada nas manchas de mofo em cobertores de caridade por causa de um risco curvo, mal se percebia o que era, um cisco, um defeito na cartolina, onde é que já se viu; um corpo mofino, a Soraia, azul de giz nas pálpebras e o rego entre os seios gordos a servir de Gólgota a um Cristo de prata, tremendo ao sopro das correntes de ar num nicho de mármore e caliça, um vão de escada, por causa de um risco curvo, uma pestana de arganaz na base de uma letra, se tanto.
- Demoras muito?
Gotas de chuva que lavam a gordura de dedos de avó e narizes de miúdos no vidro da porta, é favor fechar, um prédio semeado entre eucaliptos, lama e a magreza de cães vagabundos num cerro de cimento e ferro do Pendão, e à noite, no intervalo da telenovela, a gloriosa vista de um presépio de barracas na varanda do quinto esquerdo. A noite assim fria no vão de escada e o vento a assobiar-lhe um Charles Mingus de invernia, touch my beloved’s thought while her world’s affluence crumbles at my feet; às vezes parece-lhe tão verdadeiro que experimenta a pior das saudades, a falta indizível do que nunca teve, e por isso o trombone de Quentin Jackson, um arrepio, morde-lhe os artelhos gelados na madrugada dos proscritos.
- Vou já.

As funçionárias desta pastelaria desejam-lhe um feliz Natal e um próspero ano novo. A cedilha, a puta da cedilha, quem é que a mandou ir para ali, eu que transpirei tanto a escrever próspero, preocupada, os grumos de rímel que me desfiguravam o rosto na aflição, a fazer lembrar o que sucedia entre os braseiros dos fornos, o senhor Duarte que se babava de sofreguidão para o meu pescoço, as mãos húmidas que me analisavam os refegos e as caixas de bolo rei esmagadas numa confusão de nádegas, um atraso na sangradura do ventre e a lividez na expressão do senhor Duarte; eu que reli tantas vezes, eu a ver que não conseguia escrever próspero, pe, rós, pe, ru, pe, rós, e sai-me a cedilha em funçionárias.

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