22 novembro, 2005

filipe (três)



...Os homens não seriam capazes de
viver juntos, se não tivessem confiança uns nos outros,

isto é, se não dissessem a verdade.
(S. Tomás de Aquino, Summa Theologica)...


P ela noite, de segunda a sexta-feira, depois da sopa de feijão verde e da metade de uma maçã - três vezes três, seis metades, três malápias pequeníssimas num pires de casquinha -, a minha mãe reclinava-se, pitonisa de Sete Rios, na chaise longue e apontava-nos uma agulha de tricotar que desenhava colérica a preia-mar de Santa Helena no nevoeiro de tabaco da sala de visitas.
- Todos, agora – instruía a minha mãe, a batuta de alumínio a voejar numa confusão de traça estropiada. – Salve o popolo d’eroi – cantava numa voz penitente de confessionário. – Son rinati e figli suoi – respondíamos, três vezes três, sem percebermos que se tratava da Giovinezza, e que por esse e outros motivos é que os vizinhos murmuravam fascistas! quando nos encontravam nas escadas do prédio e descobríamos anúncios envergonhados no Diário de Notícias; vimos por este meio declarar que nunca tivemos qualquer associação com a DGS, ou qualquer coisa assim que o meu irmão mais velho, tão frágil, decifrava, encharcado de escarlatina num quarto que cheirava a remédios, o indicador trémulo a sublinhar as letras miúdas no papel de jornal.
De forma que cresci a alombar com esta culpa de qualquer coisa que não cheguei a perceber, não sei se das migalhas dos ouriços da Ericeira nas hastes de um gamo de quadrícula na minha camisola de lã, se desta fealdade sem par na progénie, e daí, creio eu, a inocência eterna da minha pele, a cor de leite nas costas das mãos e os veios azuláceos, tão frágeis, no eixo da testa. Daí a tua impaciência para com os meus silêncios ensimesmados, as minhas surtidas repentinas à Langrenus e ao Mare Nubium, para onde levaram o meu irmão mais velho; pelo menos imagino-o assim, transportado noite dentro, cosmos fora, pelas Streptococcus pyogenes. Daí que num nascer de noite em Outubro tenha julgado ver a tua capelina a abordar um autocarro em Mem Martins, ao fundo de uma rua sem passeios, e tenha encontrado, em seguida, uma mala e um caixote cheios disto que eu sou desde miúdo à porta do armazém onde por acaso, tão-só por acaso, trabalho.
Sinto a tua falta.

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