21 novembro, 2005

filipe (dois)

As mesmas nuvens numa praceta de Paiões, Outubro, Novembro, Dezembro, Janeiro, Fevereiro, sem a pieira cava do mar nos intestinos das furnas, sem o verniz cor de sangue a estalar de maldade no dedo teso da minha mãe. Para ali sozinho numa viuvez de mentira, a carpir esta falta de ti, das costuras coçadas dos teus chinelos, do creme nívea dos regos da tua testa incomodada para os meus lábios.
- Boa noite – um estalo seco no interruptor e o exílio de um anel num pratinho de estanho. - Dorme bem - um rumor de lençóis e cobertores. - Amanhã falamos – as pálpebras empenadas que não fechavam.
Três assoalhadas, a viver com o papel desmaiado de um maço de revistas Flama, tão velhinhas, por companhia; um cheiro a mofo, a loja de antiguidades - antiques, velharias, restauros numa parede a esbarrondar-se de idade à beira do alcatrão no Pobral, um amontoado de mós e uma roulotte de pães com chouriço – quando lhes encosto os extremos às minhas narinas; se inspiro com muita força, palavra que pressinto a minha mãe para os lados da cozinha; e então a marquise é uma esplanada, faz de conta, a minha mãe numa mesa de café, faz de conta, a verter laranjada nos copos dos meus irmãos, faz de conta que ainda somos três vezes três.
- Os meus rapazes são uma estampa, não são? – e o empregado da pastelaria a despontar detrás do tanque de lavar roupa, a assentir num sorriso palerma. – É pena aquele ali, o terceiro dos seis, ter saído assim – lamenta-se a minha mãe a desaparecer de uma magreza doente num casaco de malha.
Deixo a febre doce dos lençóis, a solidão de flanela e camélias de plástico de um quarto de rés-do-chão – três assoalhadas, vai ver que lhe bate aqui o solzinho de manhã à noite, ó se bate - e levo as mãos em malga a um fio de água amarela, um travo de fénico na boca; procuro uma nesga iluminada por entre as grades da janela do meu quarto e saio atrasado a evitar a água das poças.
Consegues vê-la daí, a falta que me fazes? Levo-a comigo todas as manhãs.

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