24 novembro, 2005

Rheinübung



...Quem consegue
ver os dois aspectos de uma questão

é um homem que não vê absolutamente nada.
(Oscar Wilde)...


Chamo-me Júlio e sou um par de calças de fazenda - uma cor desmaiada a fazer lembrar a agonia - que me atormenta as virilhas com uma comichão teimosa e balança como os sinos do campanário da vila num empedrado acima, empedrado abaixo, ainda o sol não acabou de remover as ramelas nas agulhas dos pinheiros, e isto num extremo da mata que mais ninguém conhece. Sou um bom dia belfo numa trincheira de dentes rombos, um dedo encardido de resina e betume a aconchegar um aparelho cansado no cavername do ouvido, o tema de conversas de retrosaria, coitado, de teses de domésticas e de sentenças as mais avisadas. Sou uma vassoura de galhos, cingida de ráfia, a descrever a Dança dos Mirlitons nos interstícios dos canteiros do meu jardim, se me vejo protegido pelos arbustos que podo à tesourada em forma de cestinhos de verga, a salvo do estupor de quem passa; Tchaikovski entre as conchas e os seixos que trouxe em sacos de supermercado da Figueira da Foz, aprisionados, depois, no cimento dos muros, e as folhas mortas de um salgueiro. Vivenda Saudade.
- Bom dia – digo a ninguém, a geada nos puxadores das portas e nos bancos da praça. – Vai-se andando – devolvo ao vazio numa solidão contente, a eito.
À noite desapareço das ruas, poupo no café e nas cigarrilhas, na piedade dos olhares, coitado, nas solas das botas de atanado e nos remendos entre as pernas. Sou os restos de um papo-seco com queijo e uma garrafa de cerveja que não chego a esgotar na ponta de uma mesa. Sou uma confusão de formões e plainas, pincéis e latas, pregos e lascas. Chamo-me Günther, suponhamos, e o barracão do meu quintal é um estaleiro de Hamburgo, suponhamos, e de um amontoado de molas de roupa, rolhas de cortiça e fósforos nascem cruzadores, suponhamos, um deles com oito canhões de trezentos e oitenta e um, doze canhões de cento e cinquenta, dezasseis canhões de cento e cinco, suponhamos, e num recesso do Alva os penedos serão, qualquer dia, os fiordes de Bergen, suponhamos, o Bismarck e o Prinz Eugen rio abaixo de encontro ao fim.

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