21 novembro, 2005

vanda

Tem certos dias em que eu penso em minha gente
E sinto assim todo o meu peito se apertar
Porque parece que acontece de repente
Como um desejo de eu viver sem me notar


A minha mãe legou-me uma gravura do Rossio antigo - senhoras de espartilho e sombrinha, homens de chapéu de coco e bigodes de merceeiro, que engraçado; o amarelo de uma velhice de sótão. Fê-lo dois dias e três quartos de hora antes de naufragar numa tosse funda, um eco de gruta húmida do quarto para o corredor, do corredor para a cozinha, da cozinha para os plásticos encardidos que forravam prateleiras de aglomerado na marquise e daí para os meus ouvidos, que nem tapados pelas mãos em conchas – recolhia-as aos domingos de mão dada com o meu pai, conchas e pedrinhas pequeninas e pálidas por entre a nafta da Cova do Vapor - podiam fugir ao sortilégio da morte gemebunda; lembro-me dos grumos de um sangue de breu que lhe besuntavam as pregas das bochechas com córregos preguiçosos, enquanto eu regava estrelícias e uma costela de Adão como se nada fosse, como se a minha mãe não tardasse no portãozinho do quintal que rangia se o empurrássemos devagar, talos de couve e o rabo tísico de um bacalhau a espreitar da alcofa, um tlec-tlec nervoso entre os calcanhares e os tamancos.
- Larga o rádio e põe-me a mesa, sua imprestável - e eu a assobiar o Buarque e o Vinicius.
Tlec-tlec, tlec-tlec.
De modo que a gravura é tudo o que dela sobeja. Paguei-lha como pude, com lágrimas, visto que por essa altura o meu Fernando andava aos caídos por uma tasca tolhida na estação dos comboios de Queluz, a vomitar o desemprego e uma sopa de vinho azedo para os lancis e para as tampas dos serviços municipalizados, um fato-macaco da Lisnave que não queria despir, a carregar a mesma dignidade da viúva que bebia cariocas de limão às sete e meia num cantinho sombrio da pastelaria Trinitá.
Não se lhe ouviu uma palavra de carinho, um sempre gostei de ti, mesmo quando os sulcos da minha mão permaneciam litografados na redondeza do teu rosto, apenas um aquilo acolá é para ti e o resto é para a paróquia. De forma que arrebanhei o que pude e despejei quatro sacos de plástico e uma caixa de cartão canelado à porta do centro de dia; a minha mãe esquartejada em blusas estampadas e camisolas de lã, xailes e panos de cozinha, colares de pechisbeque e dedais; a minha mãe espalhada pelos pescoços macerados das velhinhas, pelos contentores da praça, pelos caniços numa margem do Jamor.

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