04 janeiro, 2009

seis, sete e oito (três)

Degrau. Um manto de lágrimas de pinheiro sobre laje e gravilha, choupos e ciprestes nas margens do caminho. Degrau. Um penedo a transpirar musgo, a laje despede-se das lágrimas dos pinheiros e as colinas estendem-se em vagas de frio na direcção da fronteira, na tela áurea do Sol. Degrau. Cadeirinha de Nossa Senhora, cadeirinha do meu bem; onde se sentou Nossa Senhora sento-me eu também.
- A tua pele de leite confunde-se com as paredes caiadas da capela e torrões de quartzo entre os veios de um trono de rocha – proclamo de lábios cerrados à guarda de um crucifixo sujo talhado em pedra de lioz. Imagino um messias de boina de fazenda, camisola de lã e botas com solas de pneu a suster o madeiro no ombro rangente, rios de peregrinos serra abaixo, enfermos de chagas purulentas e possessões de demónios ibéricos, as nascentes distantes, um fiapo de água cristalina a brotar de uma caleira na Travessa do Forno, outro de uma pálpebra num rosto de ferro indizível a encimar as tachas e as dobradiças de uma porta no cais da Rua do Passo Quedo, a esquadria imperfeita da muralha e um gato estrábico e dócil por companhia.


Degrau. Quase no cume. Erguemos as mãos e tocamos o céu gelado num êxtase de ascetas. Beijamo-nos. Os teus lábios sabem-me a calda de ameixa, o recorte do teu rosto confunde-se com os cumes enquanto levito a emanar halos de beato dos poros da nuca. Degrau. Eis-nos. Três velas sobre um prato de barro a iluminar o altar da nossa comunhão, no topo do conjunto uma escotilha oval e a ermida reproduzida em golpes toscos de espátula, um monte, uma igrejinha de cerâmica, um céu franqueado e Cristo a tombar morto no colo da mãe, ambos ingénuos e desiguais. Feridas abertas no peito, numa curva da anca magra, os joelhos esfolados, os pés sangrentos. E a Senhora da Penha contempla-nos numa placidez de bordadeira, lágrimas de verniz que escorregam pelas bochechas frígidas, pelas vestes negras, pelo pano de linho sobre a pélvis do mártir, por flores de bronze estampadas sobre o relevo das pernas, pela tinta de água do altar, pela tijoleira, pelas grades, pela sombra trémula de um enlace de amantes à luz de velas proibidas.