01 fevereiro, 2007

leannán-sidhe (um)

«Há sempre, após a morte de alguém, como que uma estupefacção que se liberta, tão difícil é compreender essa invasão do nada, e resignar-se a acreditá-lo.»

Gustave Flaubert - Madame Bovary


Feltro e veludo, as almofadas são feltro e veludo. Excepto aquela ali, um cágado ocre urdido de espessa cordoalha de lã, numa agonia de nódoas de café com leite e migalhas de bolachas. Água e sal. Baunilha. Do tinto da alcatifa surde um caule de pau preto e no lugar da ramagem há, imagine-se, uma pantalha de cartão estampado, note-se, e nela um céu de fim de tarde, suponha-se, mulheres macondes quase sombras, sem olhos e de mamas murchas, uma tabanca difusa engastada em restos de machambas, jacas na mão de um régulo. De modo que a luz nasce dos filamentos incandescentes de Cabo Delgado e vai acender as órbitas vazias de um Guerra Junqueiro em gesso acobreado, um tronco sem braços e até um arremedo de azebre na bainha das barbas. No coto da omoplata o peso de livros e nos antípodas da prateleira um galeão de filigrana a vogar em mares alterosos de croché de encontro a pequenos galgos de loiça.
- O que é que se come nesta casa? – e o canto da folha de jornal faz-se sombra por cima do soba no apocalipse do candeeiro – Açorda – ouve-se da marquise, e nisto a consulta do obituário revela dois cocuanas acocorados entre a vegetação.
Ocorre-me agora que esta cidade é um murmúrio seco, um lamento de criança para lá das persianas de um primeiro andar, uma montra sórdida, um casal de manequins, íris e retinas de vidro que nos seguem o caminhar penoso à procura de um porto de abrigo. Esta cidade que desaparece na noite é, dizia, um murmúrio, tão triste, tão sozinho, tão bordado de penumbras, feito de folhas mortas nos passeios, de um número de porta a fazer lembrar Paris, trinta e sete, primeiro andar, de vento frio na Avenida de Roma.

Sem comentários:

Enviar um comentário